segunda-feira, 27 de junho de 2011

O abraço do pé de meia perdido

- Você vai queimar no fogo do inferno!

Passou ela por mim alvoroçada, enquanto eu já chegava desistindo de ficar.

- O "caba" já tá "fdd" e tem que ouvir isso!? No inferno eu já tô! Ela que vá se meter com a vida dela! – disse ele, descontrolado.

É... definitivamente cheguei na hora errada, apesar do atrito já ter se dissipado. Ele gesticulava em movimentos bruscos e continuou a sequência me olhando:

- Eu sustentava minha família, dava duro, acordava 5h da manhã pra trabalhar, tenho um filho doente da cabeça e o outro é um marginal, minha mulher não trabalha e agora "tamo" vivendo de esmola dos outros. O doutor já disse que não tem volta, tô enfiado nessa cadeira pra o resto da vida, feito um condenado e ela vem me falar de igreja!!!?? Tá pensando que é enviada do senhor!!!? Cadê ele que não aparece aqui!!!? "Entregue a Deus"!? Conversa, rapaz!!! Se ele existir que desça de onde tiver e venha operar milagre pra quem precisa.

Ele falava compulsivamente, mal respirava e eu no meu silêncio ouvia, sem desviar o olhar.

- Aí...você. Menina nova, tranquila...tá com a vida parada! Dá revolta, rapaz!! Agora eu vou mandar você pra um culto pra você sair de lá andando? Conversa fiada! Anda se tiver de andar e pronto!

Continuei muda, sem argumentos. Queria respeitar a dor, o momento sem julgá-lo, sem repreendê-lo. "Todo mundo é parecido quando sente dor"...Ele continuou:

-Pedir perdão? Ela é doida, é!!!? Quem tem que me pedir perdão é Deus por ter me dado uma vida de cão, ainda achou pouco, tirou meu ganha pão!!! Isso sim...eu...eu já nasci castigado, rapaz...

Silêncio oco...vi que ele tinha a voz trêmula, olhos úmidos...também senti vontade de chorar...ele desviou o olhar de mim... mas eu o fitava, como se ele me exigisse para segurá-lo. Mas eu não sei o que dizia minha expressão...estava desfigurada, impotente. Os berros espantaram os que estavam por perto...ele enxugava os olhos graúdos...meia idade, grisalho, forte, humano. Depois de um longo tempo, disse em meia voz:

- Eu só queria saber o que foi que eu fiz...

Esperou uma resposta minha, mas devolvi meu silêncio covarde. Depois completou:

- Eu devia ter morrido, pelo menos só "dava" uma dor a minha mulher... mas Deus não foi nem capaz de me tirar a vida".

Novo silêncio se fez...dessa vez mais longo. Ele até fez menção de falar algo... mas as palavras estavam afogadas no sofrimento. Contemplei aquele desenho triste como uma moldura em minha visão. Essa seria a hora em que algum "Lucas" deveria aparecer ali. Eu era inútil, já tinha crescido. Senti-me como aquele aviador, martelo em punho, dedos sujos de graxa..."eu não sabia o que dizer. Sentia-me desajeitado, não sabia como atingi-lo, onde encontrá-lo... É tão misterioso o país das lágrimas".

-Você não "tinha" vontade de saber? – disse ele mais calmo, cortando minha angústia.

-Saber o quê? – disse eu, perdida.

-Por que "aconteceu" com você? – ele me perguntou interessado.

Devia ser sobre minha incapacidade de andar. Então, interroguei-o, desafiadora:

-Hum...e eu perguntaria a quem?

-A Deus... – respondeu ele, um pouco desconfiado.

-Depende...dessa vez eu iria poder fazer mais de três perguntas? – disse eu ironicamente me referindo a brincadeira do outro dia sobre os três pedidos...ele ensaiou um riso no meio do choro.

-Sim. – respondeu dando seguimento.

-Hum...não sei se perguntaria isso primeiro, então. – fiz cara de reflexiva.

-Por quê? – ele ficou intrigado.

- Ah...porque se eu fosse seguir uma ordem, sem me preocupar com a urgência, tem tanta coisa prioritária que eu perguntaria antes, que acho que demoraria pra chegar nessa pergunta.

Retruquei.

-E tu "ia" perguntar o que primeiro? – perguntou, curioso.

-Ah...sem dúvida "onde estão todos os meus pés de meia perdidos e todas minhas tampas de tuperware da vida inteira!".

Ele gargalhou...riu muito...e disse:

-Essa foi boa! Gostei!

Continuou rindo, balançando a cabeça positivamente, enxugando os vestígios úmidos...olhando pra mim. Rimos juntos por algum tempo...risos e silêncio...acho que esse foi o meu "abraço do Lucas". Senti um alívio desembaraçando meu coração. Uma mistura de dor e afago, de cumplicidade e solidão...

7 comentários:

  1. Kalina, estou te acompanhando por aqui...Espero te acompanhar mais de perto, na UNP!!!.Menina, vc saiu muito bem nessa, rsrs. Cada postagem sua tem sido uma lição de vida para mim! Deus te deu um dom incrível derramar sobre a vida de outros consolo, força, coragem...Sei que hj precisas muito dessas 3 palavrinhas...É dando que se recebe!!!Plantando hj,colhendo amanhã e a sua colheita será sem LIMITES!!!
    sua vida capacidade de ajudar a outros

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  2. Simplesmente FANTÁSTICO! Lembra do poder que temos em mudar um pouquinho a vida de alguém? Te falei naquela mensagem no face que o blog ajudaria muita gente, mas esqueci de te dizer que tua presença, teu jeito ajuda qualquer um! Bjus e se cuida pequena-grande mulher...

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  3. Cada um tem o seu dia de Thor, pequeno momento de alegria no meio de tanta revolta q jamais será esquecido...

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  4. Com certeza... esse foi o seu "abraço de Lucas" nesse cidadão.
    Cada um "abraça" o outro da forma que pode... e você o abraçou com humor, simpatia e compreensão.

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  5. Já percebeu que a gente substitui as preocupações, as dúvidas, as urgências o tempo todo? Você acertou em cheio!

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  6. Renata: aí Renata...que bom que tá te fazendo pensar. Bjo
    Iara: será hein? Se for para melhor, tá velando. Sempre vale. Bjo
    Rodrigo: verdade...a gente ergue o martel do poderoso Thor muitas vezes sem saber!
    Tri: como seria bom que houvesse sempre algum alívio vindo de qualquer lugar, né?

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  7. Voce foi corajosa, ficou só observando e na hora certa respondeu a pergunta do homem, "o seu lucas" e muito generoso com voce, parabens estou cada vez mais supreso com você.

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