quarta-feira, 29 de junho de 2011

Não confunda SUAVE com SWAB

Desci da nave e entrei no reino de Pandora. Encarei a rotina dos recém "nascidos": guichê, chamada pela televisão, reavaliação, encaminhamento para a internação, corredor, elevador, porta de bang bang, saleta isolada, recepção, cartão de identificação. Aguardo. Alguém entra falando um nome familiar, o meu. Passo por outra porta, entrego a mochila, ponho o braço no aparelho que anuncia minha pressão arterial e meus batimentos cardíacos. Sigo para pesagem com cadeira de rodas em uma balança com rampa. Cabine, cortina. Retiro a roupa e os tênis e ponho-os em sacos plásticos separados obedecendo as instruções. Ponho os dois sacos em cima da cadeira de rodas para pesagem de todos sem mim. Banho, ali mesmo, compartimento bem equipado. Visto um pijama todo branco. Engraçado como a intimidade automática se torna uma imposição. Sua condição permite imediatamente a falta de privacidade nos serviços médicos.

- Retire da mochila seus itens de higiene e ponha-os no saco azul, os outros no saco branco, exceto os objetos de valor. Eles serão repertoriados por um funcionário no guarda volume e você terá um código. Você poderá obter uma autorização para recuperá-los na enfermaria onde você vai se alojar.

Pensei: "É... Pandora é realmente em outro planeta. As coisas são organizadas, têm protocolos e funcionam". De imediato, segui o comando e ela continuou:

- Em seguida, você se deita nessa cama e nela você será conduzida para complementar algumas informações antes de ser liberada para internação. Você será acompanhada por um funcionário, mas sua cadeira será levada para a higienização e entregue mais tarde.

"Gente...as impurezas da terra precisam ser descartadas! Pandora é uma espécie de Gattaca, a Ilha ou sei lá mais que filme de ficção científica!?"

Fui "chipada" com um bracelete permanente trazendo meu nome e alergia. Assim respondi uma série de perguntas, exceto uma:

- Você fez o Swab?

- Ã ?

- Aqui este exame é feito em pacientes que estiveram hospitalizados em UTI nos últimos três meses.

- Não fiz.

Não tinha a menor ideia do que era, mas tinha certeza de não ter feito porque todos os exames até então feitos, eu conhecia seus nomes.

- Vamos voltar a cabine e fazê-lo. O resultado sairá em 5 dias. Enquanto isso você estará em vigilância na enfermaria não podendo participar de nenhuma atividade. ("Minha nossa...nem sequer liberdade assistida?").

Querem saber o que é SWAB? Sinceramente...achei que cotonete tinha sido feito somente para os ouvidos...ledo engano... minha boca e olhos foram poupados ...mas o resto...ninguém merece.

terça-feira, 28 de junho de 2011

Enfim: Rehab em Pandora no meu avatar!

No ano 2011 d.C. (agora é d.C mesmo!!!) na rede de hospitais Pandora, uma das luas do Cerrado, um dos nove gigantescos planetas orbitando Neurologia Centauri, a 2507 km da Terra Natal... seres humanos especiais, “modificados pela fatalidade”, continuam sendo convocados a explorar as reservas de um precioso “minério” chamado “rehab”.  Pandora é basicamente habitado por uma espécie de humanoides chamada Na'vi. Eles medem aproximadamente 1m10 de estatura, têm rodas ou ossos naturalmente reforçados com talas ou próteses de fibra de carbono e pelos bioluminescentes. Procuram viver em harmonia com a natureza, mas são considerados incapazes por grande parte dos humanos que não conseguem se adaptar a atmosfera de Pandora por não entenderem sua cultura de viver a vida do jeito que ela se apresenta. Dra. “Grace Augustine” (desta vez não será interpretado pela Sigouney Weaver), me agracia enfim com uma vaga para participar do Programa Avatar (híbridos humano-Na'vi geneticamente modificados). O que isto significa? (minha versão é bem mais didática que o filme original!): um ser humano especial recém “modificado pela fatalidade” que compartilhe material genético com um Avatar consegue ter ligação mental suscetível a produzir conexões neurais que permitem o controle do corpo deste Avatar! Eu embarco então em Pandora amanhã, dia 28/06/2011 às 8h horário local, para fazer parte dos Na'vi em uma missão interna incorporando a versão feminina de Jake Sully. Lembram quem é? É aquele ex-fuzileiro paraplégico um pouco desajeitado que chega por último para fazer parte do grupo. Pois é, estou tranquila, brilharei de azul e cinza aperfeiçoando minha busca para qualquer que seja o resultado. Não sei quanto tempo ficarei nos encargos, mas vocês estarão comigo... portanto, conectem-se a nave, retransmitam sinais aos parceiros e me sigam (em 3D por favor!!). Tenham a certeza de que lá ficarei bem instalada na Casa da Árvore, desta vez preservada por meu clã e serei regada pelas sementes da Árvore da Vida!!!! Será que eu terei minha alma transferida permanentemente para meu avatar por meio da Árvore das Almas?

segunda-feira, 27 de junho de 2011

O abraço do pé de meia perdido

- Você vai queimar no fogo do inferno!

Passou ela por mim alvoroçada, enquanto eu já chegava desistindo de ficar.

- O "caba" já tá "fdd" e tem que ouvir isso!? No inferno eu já tô! Ela que vá se meter com a vida dela! – disse ele, descontrolado.

É... definitivamente cheguei na hora errada, apesar do atrito já ter se dissipado. Ele gesticulava em movimentos bruscos e continuou a sequência me olhando:

- Eu sustentava minha família, dava duro, acordava 5h da manhã pra trabalhar, tenho um filho doente da cabeça e o outro é um marginal, minha mulher não trabalha e agora "tamo" vivendo de esmola dos outros. O doutor já disse que não tem volta, tô enfiado nessa cadeira pra o resto da vida, feito um condenado e ela vem me falar de igreja!!!?? Tá pensando que é enviada do senhor!!!? Cadê ele que não aparece aqui!!!? "Entregue a Deus"!? Conversa, rapaz!!! Se ele existir que desça de onde tiver e venha operar milagre pra quem precisa.

Ele falava compulsivamente, mal respirava e eu no meu silêncio ouvia, sem desviar o olhar.

- Aí...você. Menina nova, tranquila...tá com a vida parada! Dá revolta, rapaz!! Agora eu vou mandar você pra um culto pra você sair de lá andando? Conversa fiada! Anda se tiver de andar e pronto!

Continuei muda, sem argumentos. Queria respeitar a dor, o momento sem julgá-lo, sem repreendê-lo. "Todo mundo é parecido quando sente dor"...Ele continuou:

-Pedir perdão? Ela é doida, é!!!? Quem tem que me pedir perdão é Deus por ter me dado uma vida de cão, ainda achou pouco, tirou meu ganha pão!!! Isso sim...eu...eu já nasci castigado, rapaz...

Silêncio oco...vi que ele tinha a voz trêmula, olhos úmidos...também senti vontade de chorar...ele desviou o olhar de mim... mas eu o fitava, como se ele me exigisse para segurá-lo. Mas eu não sei o que dizia minha expressão...estava desfigurada, impotente. Os berros espantaram os que estavam por perto...ele enxugava os olhos graúdos...meia idade, grisalho, forte, humano. Depois de um longo tempo, disse em meia voz:

- Eu só queria saber o que foi que eu fiz...

Esperou uma resposta minha, mas devolvi meu silêncio covarde. Depois completou:

- Eu devia ter morrido, pelo menos só "dava" uma dor a minha mulher... mas Deus não foi nem capaz de me tirar a vida".

Novo silêncio se fez...dessa vez mais longo. Ele até fez menção de falar algo... mas as palavras estavam afogadas no sofrimento. Contemplei aquele desenho triste como uma moldura em minha visão. Essa seria a hora em que algum "Lucas" deveria aparecer ali. Eu era inútil, já tinha crescido. Senti-me como aquele aviador, martelo em punho, dedos sujos de graxa..."eu não sabia o que dizer. Sentia-me desajeitado, não sabia como atingi-lo, onde encontrá-lo... É tão misterioso o país das lágrimas".

-Você não "tinha" vontade de saber? – disse ele mais calmo, cortando minha angústia.

-Saber o quê? – disse eu, perdida.

-Por que "aconteceu" com você? – ele me perguntou interessado.

Devia ser sobre minha incapacidade de andar. Então, interroguei-o, desafiadora:

-Hum...e eu perguntaria a quem?

-A Deus... – respondeu ele, um pouco desconfiado.

-Depende...dessa vez eu iria poder fazer mais de três perguntas? – disse eu ironicamente me referindo a brincadeira do outro dia sobre os três pedidos...ele ensaiou um riso no meio do choro.

-Sim. – respondeu dando seguimento.

-Hum...não sei se perguntaria isso primeiro, então. – fiz cara de reflexiva.

-Por quê? – ele ficou intrigado.

- Ah...porque se eu fosse seguir uma ordem, sem me preocupar com a urgência, tem tanta coisa prioritária que eu perguntaria antes, que acho que demoraria pra chegar nessa pergunta.

Retruquei.

-E tu "ia" perguntar o que primeiro? – perguntou, curioso.

-Ah...sem dúvida "onde estão todos os meus pés de meia perdidos e todas minhas tampas de tuperware da vida inteira!".

Ele gargalhou...riu muito...e disse:

-Essa foi boa! Gostei!

Continuou rindo, balançando a cabeça positivamente, enxugando os vestígios úmidos...olhando pra mim. Rimos juntos por algum tempo...risos e silêncio...acho que esse foi o meu "abraço do Lucas". Senti um alívio desembaraçando meu coração. Uma mistura de dor e afago, de cumplicidade e solidão...

sábado, 25 de junho de 2011

A.C. D.C. no meu caminho!

O que acontece nesse intervalo A.C.D.C.? Quem poderá responder!? Os pais não respondem nada além do que sabem e vez em quando inventam uma bela estória pra se livrar da nossa insistência. Então, um dia descobrimos os professores: seres neutros treinados para perguntas! Talvez eles saibam responder, quem sabe? Enfim, uma mina de ouro que recria nos seres curiosos a esperança de respostas. Mas, nem se empolgue, não se iluda. Aí também os recursos serão limitados. Para compensar sua frustração, vão empurrar a responsabilidade para o dicionário. E se você demonstrar perseverança, vão ensinar a pegar carona nos métodos de pesquisa. Você vai encontrar fontes de conhecimento, divergência de opiniões, controvérsias nos diversos pensamentos sobre as mesmas coisas. Aí parceiro...você começa a sacar que alguns assuntos esbarram num desacordo sem fim e causam discórdias tão robustas que são capazes de romper os elos. O mundo se estende e se divide: Ciência ou religião!? Alguma deve dar a explicação! A ciência ensaia o entendimento e as crenças confortam pretendendo nos proteger do incompreendido com seus dogmas. Ou decidimos acreditar naquilo, ou desistimos de acreditar em qualquer coisa ou então decidimos viver questionando o mistério. Afinal, que influências nos convencem? Será que respeito o pensamento contrário? Ou será que empurro na goela do outro o que me move? Bom...o fato é que, de onde estou, como vivi e quem encontrei pelo caminho, nada disso consegue aquietar minha mente apesar de acalentar meu coração. Eu aqui, nas minhas “escrivaninhações”... sem saber exatamente o que me reserva a real mudança entre A.C. D.C...é...não adianta brincar de buscar a origem das coisas...nem muito menos o porquê de estar aqui grudada nessa cadeira. Olha só...não tive momentos de revolta contra o mundo ou contra nada por causa disso. Afinal, quem tem a ver com isso!? O sol continua nascendo e a vida rolando. “A dor é minha, só, não é de mais ninguém”! Ninguém tem culpa, já concordamos com isso. Agora...se o fato de me tornar cadeirante tiver um propósito, faço aqui meu desabafo sobre o que definitivamente não vou aprender, porque não é novidade. Começando por minha queda... eu nunca sequer consegui assistir a videocassetadas. É sério... o que uma queda tem de engraçado!!? Pra mim é uma tentativa malsucedida para enganar o constrangimento da queda (de quem vê ou de quem cai!?). Outra...sempre fui sensível a todos aqueles apelos citados no post sobre o trato com pessoas com qualquer tipo de deficiência, especialmente com cadeirantes. Mais uma...tive um professor de educação e motricidade que era cadeirante (Ironia nº4?) por ter adquirido numa viagem em missão voluntária na África uma bactéria que se instalou na medula. Esse cara me fez pensar a deficiência de uma forma diferente. E por último... anos depois, já não era mais aluna dele, desenvolvi na minha dissertação de mestrado um estudo sobre o efeito do exercício físico em cadeira de rodas em um parâmetro glicêmico (Ironia nº 5?). Portanto, não houve nada de extraordinariamente desconhecido nessa empreitada...não tive que descobrir nada em relação a esse quadro específico como muitos podem imaginar. Que fique bem claro, não é o caso, bem ao contrário. Acho que o mistério está em outra instância que ainda não descobri... Afinal...o que vai acontecer A.C.D.C.? A propósito...a título de esclarecimento... nesse contexto, A.C.D.C é Antes da Cadeira e Depois da Cadeira!!!!!

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Onde arranharia seu disco?

Dia morno sem sal nem porquê. É... o calendário não me dá folga mais uma vez. Transito entre uma leitura e um rabisco. Revisito algumas imagens que se projetam e se apagam. Percorro cenas de histórias nas telas, rebobino o tempo, reviro épocas. Nada me traz de volta. Recorto os momentos eternizados pelas emoções. Substituo-os por aqueles despercebidos e banais do cotidiano. Reconheço sua imortalidade breve com a leveza de não ter qualquer obrigação de ser o dia mais feliz da minha vida...é..."tem dia que de noite é F...!!!"

Abandono a via, varro a memória e esbarro em frases perdidas no meio do rascunho. Recorro sem vaga nas lembranças, no abrigo do consolo de ter vivido e me aninho então em canções esquecidas. Cantarolo em silêncio um tom, um timbre. Lembro-me do que retenho dos filmes, dos livros, das músicas...algum detalhe insignificante na fala ou numa tomada, num trecho, numa frase...uma perspectiva, um ângulo, um silêncio que fala tanto, mas ninguém sequer ressalta. Eu me pergunto se as vezes o autor da obra se deu conta daquilo que me assalta, se foi por acaso ou de propósito. Será que ninguém sabe o que significa meu desenho?

Na verdade, estou querendo dizer que eu acredito que a magia desses momentos acontece porque "A vida rola em um disco vinil"...se não foi exatamente isso que quis dizer o roteirista daquele filme alemão "Absolute Giganten", eu diria assim! No filme, o protagonista principal considera que sempre tem uma música dentro da gente tocando para cada momento na vida... como uma melodia de fundo que já estreia com sua chegada! Uns só se dão conta quando o silêncio se faz. Mas há uma trilha sonora composta por momentos que tocam em sequência sem cessar, no tempo de sua existência ... as vezes em tom alto, as vezes, baixo. É exatamente isso, uma trilha sonora com a cara de sua vida!!! Então...me diz que música está tocando agora no seu momento? Sua música já tocou ao mesmo tempo na vida de outra pessoa? Neste dia, na música de fundo, seria maravilhoso se pudéssemos repeti-la arranhando o disco nos nossos melhores momentos... Em que momento você arranharia o seu disco?

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Qualquer lugar...mas me leve junto

Quando veio já tinha sido e a noite passou em um segundo. "Todo dia a insônia me convence que o céu faz tudo ficar infinito". O dia então começa com a introdução de uma sinfonia crescente de raios de luz, como uma fresta escapa apertada pra dedurar o claro. “Não sei flutuar nas nuvens como você", mas dou rasantes em meus pensamentos nessa esfera. Abrigada nas nuvens ninguém me destoa, nem me rouba o roteiro em minha urgência de gritar e calar, de despregar de mim e decolar pra longe. Um ímpeto de ir aonde eu sempre quis de uma vez por todas, sem me adiar por nem mais um segundo, nem de raspão, nem por um triz. Desejo certeiro e reto que move a vontade. Para onde você vai hoje? Você tem escolhas? Para onde me levaria? Vá então...exerça, viva!! Mas vá andando...não esqueça de dar-se conta da temperatura uniforme de seu corpo, de seu peso urgindo nas raízes das pernas, do vigor do sangue circulando a vida em comunhão dos músculos, encontrando-se nos passos de uma dança, alternando entre a contração e o relaxamento, harmonizando enfim o movimento. É essa coisa quase involuntária, mas certamente inconsciente e ignorada desde que você ganhou estrada. Não vale maldizer a sobrecarga cotidiana. Apenas preste homenagem a sua capacidade, seja ela qual for... não a despreze mais como aquele refrão decorado cujo significado nunca foi ouvido. Vá hoje a pé a algum lugar onde você nunca foi pisando nesse chão...  me leve junto. Não é necessário me conhecer. Você é o desconhecido que não me faz medo. Também não precisa ser distante, nem necessariamente longo. Só precisa ser percebido e meditado. Tenha a terra como assoalho, o chão de folhas, de concreto, de barro ou asfalto, entrecortado, intertravado, irregular, de pedrinhas, grama verde, solo de areia ou na areia, solo ou acompanhado...não importa. Apenas ouça os "passos das pisadas" e sorria se lembrar de mim.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

As estrelas cadentes do céu de Ícaro

- Olha quem tá chegando aí! Bora perguntar pra ela.

Os três se animaram em me lançar o desafio!

- E então, qual é a boa? – disse eu, toda corajosa, ao grupinho.

- Se você encontrasse com Deus e ele concedesse 3 pedidos, o que você pediria? (“Como assim? É Deus ou o gênio da lâmpada!!? Engarrafaram Deus!!”)

- Não sei...assim... não saberia dizer. – disse eu toda atrapalhada.

- Não disse!!! Hahahahahaha! Todo mundo dá bobeira meu amigo! Isso não pode acontecer.

Disse ele tomadíssimo por um sentimento de certeza e urgência! E acrescentou:

- Tem que deixar os pedidos prontos!!

Eu ri e disse:

- Tá bom, vou providenciá-los, pode deixar.

- Sim, mas tem que ser logo pra não perder a chance! (“Tô começando a achar que ele já esfregou a lâmpada!!”).

-Certo e você já fez os seus? – perguntei para mostrar interesse pelo joguinho.

- Claro né? (“Óbvio! Que pergunta a minha!”). – disse ele e continuou:

- Todo mundo aqui já fez, só você que tá atrasada (“Isso eu já entendi! É que eu não sabia que também estava escalada para a expedição do Aladim!”)

- Tá e aí, além de voltar a andar, o que mais pediram? – eu tentando adivinhar o óbvio!

- Eu pedi um emprego de bibliotecário e a cura do meu filho. Ela pediu pra engravidar e que tem que ser menino. E ele pediu uma casa e um carro adaptados porque já tem tudo.

- Ah tá...legal... – disse eu, um tanto quanto perdida.

Eu não sabia o que dizer...ainda bem que nos chamaram naquele momento. Não dava nem pra “colar” deles...Fiquei pensando sobre a inocência do entusiasmo dos quereres e enquanto nossos desejos são circunstanciais em função das necessidades e dos momentos. Será que se esse papo fosse a próxima semana, as respostas não seriam diferentes?

Lembrei de uma vez, quando pequena, que fiquei com raiva de minha mãe porque eu queria repetir o sorvete indefinidamente e ela não deixou. Eu disse possessa: quando eu for grande, vou gastar meu primeiro salário só de sorvete. Daí, quando recebi meu primeiro salário eu lembrei disso e ri muito. Ri porque eu não sentia a menor vontade de tomar sorvete.

Quais são os critérios de prioridade para determinação dos pedidos? Será que os interesses que guiam nossos pedidos resistem a falta de algo ou alguém e ao tempo de expectativa? Será que a importância deles tem prazo de validade? E se tem, será que vale a pena desperdiçar energia mais que o necessário para "prossegui-los"? E será que sabemos administrar a ansiedade que permeia a espera de sua realização? Além disso, os pedidos não estariam influenciados por nossos valores mais profundos? Ou ainda “somos os mesmos e vivemos como nossos pais”? Discussão filosófica a parte...comecei a me perguntar sobre o que eu pediria pra mim. Estranho...estaria eu levando a sério aquele papo surrealista entre meus comparsas “Dali, Miró e Carrington”? O fato é que nunca fui boa em “organizar” meus pedidos. Lembro-me da brincadeira com um cílio colado no rosto...onde duas pessoas disputavam a realização de um pedido a partir da preensão do cílio entre os dedos indicadores de cada uma. Para não desperdiçar, na falta de ter uma carta na manga, eu sempre doava a concretização de meu pedido dizendo “se eu ganhar o cilho, quero que o desejo da outra pessoa seja realizado”. Isso me lembrava a sensação de ser “assaltada” por alguma estrela cadente e a falta de reação para elaborar o pedido a tempo. Nunca uma estrela me negou nada...nelas eu acredito! Quando eu tinha um pedido específico, eu subia no telhado ou terraço para vigiar o céu... mas aí, nada acontecia. Certa noite, eu estava na companhia de um grupo de amigos saindo de uma creperia na Bretanha e presenciamos um fenômeno que Galileu chamaria de tempestade de meteoritos... mas no céu de Ícaro, bem mais poético, aquilo seria simplesmente “poeira cósmica de estrelas cadentes” ...parecia que todas as estrelas decidiram se jogar do céu ao mesmo tempo deixando seus rastros...fagulhas como fogos de artifícios despencando do alto. Inesquecível...teria dado tempo sim, de elaborar muitos pedidos, mas ao invés disso...fiquei muda, espantada diante do espetáculo... mais tarde recebi um conselho: “prepare seus pedidos com antecedência para quando a chuva de estrela acontecer”. E você, já sabe o que pediria?

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Rumo a mim

Por que fazem carros com capacidade para 220km/h se temos que moderar a velocidade? Por que adquirimos a possibilidade de pronunciar palavras, mas não necessariamente o dom de conhecer o peso de seu significado? Por que aprendemos a dar os primeiros passos quando ainda não temos a menor maturidade para escolher o caminho? Por que alcançamos a capacidade de ter filhos quando ainda somos o filho?  Por que há essa espécie de desencontro, de desacordo entre nossa maturidade de escolher e executar? Essa contradição entre nosso arbítrio em agir e nossa responsabilidade de responder pelos atos? Vinha pensando eu, sobre como tenho que me virar com o despreparo diante da vida... Será que para conhecer as respostas, eu tenho obrigatoriamente que me acidentar em alta velocidade, falar o que não devo, me perder na estrada ou engravidar equivocadamente? Será que para aprender algo eu tenha necessariamente que ter um prejuízo irreversível? Que pergunta esqueci de fazer antes desse meu momento? Parto divagando sem amarras enquanto desabotoo minha liberdade. Minhas palavras soltas até são registradas quando lidas, mas só se imortalizam quando a comoção perfura o âmago e perdura tempo suficiente para desbotar a transformação. Sim, porque a transformação parece descolorir quando demora muito tempo para acontecer. Pode ser no lapso de uma piscada de olho, no intervalo da queda de uma estrela, no flash de um relâmpago, na brevidade de um sopro. Mas pode ser no pulsar de um bonsai, na travessia de uma lesma no deserto, na decomposição de um plástico na natureza. Mas tudo é tão simples, tudo enfim, tão evidente, translúcido...o detalhe que faltava para o encaixe das peças... tão presente, ali diante dos olhos, que de tão insignificante e banal, tornou-se invisível...um cílio no rosto, a mancha no teto, o grão da areia, o fiapo grudado na roupa, um ponto de sol escapando da telha, um furo na meia... aquele quadro que nunca olhamos em um corredor da vida, e que quando é retirado, a gente sente falta de algo, mas não sabe o que é. Não sabe exatamente o que havia como imagem naquela moldura. Só sabemos que estava ali, mas a gente nem olhava, nunca via...lembro de uma cena no filme “Mar adentro” que o sobrinho adolescente reclamava e maldizia com raiva e desdém do avô para o tio tetraplégico (novamente Ramón por Bardem) dizendo: “como se precisássemos dele”. E o tio riu em silêncio... o sobrinho não entendeu o motivo do riso e indagou o tio:

- O quê?

-Olha...um dia, não sei quando, mas um dia, daqui a pouco tempo...você vai se arrepender tanto, mas tanto do que disse, que vai querer que a terra te engula. – disse o tio.

-Mas, por quê? – retrucou o sobrinho.

-Um dia, você vai ver...um dia. – disse o tio com um riso de pesar e perdão antecipado.

Essa cena é a mais singela tradução do que é remorso na língua dos anjos. A materialização e representação de toda forma de arrependimento por uma espécie de desfalque, do que não foi percebido ou realizado... ou de nem sei o quê. É que tem coisa que de fato não dá mais tempo de voltar atrás e você tem que lidar com as consequências e ficar atento para não “perder mais o trem da história por querer”. Se você for um humano, sabe que no fundo carrega isso por alguma razão.

Eu, nessa jangada de rodas, sem âncora, à deriva como o barco embriagado do Rimbaud, cantarolo uma canção...Não volto pra o mundo onde não existo, não volto mais, não olho pra trás...e ainda que meu futuro me condene, desta vez ele me acerta, me atinge em cheio e me empurra para a frente. Abandono os atrasos da rota percorrida, esqueço os parasitas do caminho, rompo a correia das esporas, largo as armas enferrujadas. Fecho os olhos, parto as escuras sem norte, sem fardos, sem escoras. Sigo leve rumo a mim...

quinta-feira, 16 de junho de 2011

MENTIRA!!!!!!!!!!

MENTIRA!!!!!!!!!!

Todas as vagas reservadas a pessoas com mobilidade reduzidas estão ocupadas! Mentira que eu estou revivendo isso!!! Penso: "Que ótimo!! Devo ter vindo ao shopping no dia certo! No mínimo deve haver um congresso de cadeirantes aqui!!! Ou quem sabe o lançamento de uma grife para deficientes físicos!! "A revolucionária calça vestida com controle remoto"... ou algo do tipo! Bom, vocês já conhecem...escalar degraus, esperar o elevador subir e descer três vezes, percorrer corredores sem fim até chegar à loja. Parei diante de um campo minado!!! Suportes repletos de roupas dispostos de modo que só os "andantes magros" pudessem explorar os espaços. Mentira que eu estou enfrentando isso! Lá vou eu, costurando o labirinto, disputando arduamente um lugar na via. Sigo me soterrando no meio dos casacos "movediços", das calças mal-assombradas enlaçando minha cadeira das mangas das camisas me enforcando o pescoço. Vejo uma fresta de luz no fim do túnel... sim, vou alcançá-lo...sobrevivi... saio dali vestida numa camisola de bolinhas vermelhas, um cabide nos dentes, uma máscara de calcinha. Claro, é exagero, mas confesso que estou parecendo um sobrevivente do tsunami...retiro os cacarecos e dirijo-me enfim ao destino: calça de esporte!

- Quer ajuda? – disse a vendedora. Deu vontade de dizer "Agora? Só se for financeira".

- É esse mesmo o preço? – indaguei para confirmar.

- Sim, e ainda está em promoção. – falou ela como se fosse a melhor novidade do dia! Mentira que eu estou vendo isso!

- Ah tá... – disse eu pensando "pelo preço, essa calça deve andar por mim! Se você me garantir que estou comprando minha cura, levo agora! Desisto!

Venço o "pântano" e consigo alcançar a saída.

- Foi bem atendida? – disse outra vendedora "vigia dos sensores".

- Aham... (Mentira que tenho que responder isso! Que tal: "Nossa...demais, até os suportes de roupa dessa loja são amáveis, me abraçando quando eu passava e ainda saudosos sem querer me deixar partir!!!!!!!!).

Ganho o elevador de primeira!!! Que felicidade!

- Oiiiiiiiiiiiii!!! Tudo bemmmmmmmmmm!!! (Pelo amor de Deus, quem é esta criatura???? Parece que está fazendo uma propaganda de margarina!)

-Tudo bem... – disse eu sem ter a menor ideia de quem seja. E o pior, ela se vai. Simplesmente não nos conhecemos. Mentira que fui tratada assim por estou em uma cadeira de rodas!!!! Que mania é essa de cumprimentar os cadeirantes com sorrisos exagerados como se eles estivessem em carrinhos de bebê!!! Caraca! A gente só não consegue andar! Dannnnn.

O táxi chega:

- Otaviano a sua disposição (Não é possível...hoje é meu dia...só pode ter uma câmera escondida! Tenho certeza de que estão me filmando! The Truman Show!).

A figura curva-se, estende a mão para tomar a minha, feito cumprimento respeitoso de dama e fica ali...feito um dois de paus. Mentira que eu estava presenciando um milagre! Melhor...EU era o milagre ...Jesus cortou o cabelo e nem me disseram? Eu estava só esperando o "levanta-te e anda" dele... muito sem noção! Era só o que me faltava!

- Se o senhor não se importar, eu não ando e... vou precisar de uma ajuda sua para me sentar no banco, pode ser? ("ou fica difícil!!!?”).

-Ah...me desculpe princesa, pensei que só tinha quebrado o pé. – disse ele todo penoso.

Dentro do táxi:

- Talvez você não queira tocar no assunto ("íntimo, ele, né?”)  ... mas pense o seguinte ("Quer ver?... Lá vem me consolar nem sei de quê”) ...pense nas vantagens. Vagas especiais para estacionamento ("claro!!!!"), os banheiros nunca estão ocupados ("Lógico!!!"), cotas para concursos ("ahaammm!") e seus tênis ("pera...eu ouvi bem isso?").

- O que é que têm eles? – disse eu, sem entender.

- Sempre limpinhos, e vão durar a vida toda!!!! ("Mentira que estou ouvindo isso!!!! Preciso chegar logo em casa!!!"). Ele continuou:

-Semana passada eu “transportei” um amigo meu que também “tem problemas” para andar (Jesus amado...). Vou dar o facebook dele para a senhora (“como assim, gente” Vamos abrir um clube dos aleijadinhos??).

Desço do carro com o celular dando escândalo. Eu alvoroçada revirando a mochila para atender parecendo o Tom Cruise na fase cabeludo e rebelde em "Nascido em 4 de julho"!!!Atendo!! Do outro lado:

- Diga aí sumida, por onde ANDAS?

MENTIRA!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Monique van der Vorst na rampa do congresso

No alto da rampa do congresso! Eu, montada em meu cavalo cíclico, armada de coragem e fé, incorporada pela holandesa medalhista em corridas de cadeira de rodas e o handcycle!!! Lanço-me então a toda velocidade naquele tobogã, palco de momentos históricos que mudaram nossa nação para... a mesma coisa que ainda é... desço a todo vapor e com emoção para me esborrachar lá embaixo! Uuuuuuurrrrrrrrruuuuuuuu! Transtttiiiiibrummmmmmn!!!! Calma! Nada disso aconteceu de verdade. Fiquei imaginando dali de baixo essa cena ridícula enquanto esperava o táxi...Não...não se trata de um espírito destrutivo...digamos que é apenas um delírio, espécie de “forçação de barra” do acaso... no dia seguinte, as manchetes dos jornais estampariam a chamada “Cadeirante tenta suicídio na rampa do congresso e sai curada”. Solução inspirada e adaptada da história da Vorst... não contei essa, não é? Segura aí: ela ficou paraplégica aos 13 anos por causa de uma cirurgia simples e malsucedida de tornozelo. Depois do período de depressão, encontrou no esporte seu talento desenvolvendo habilidades e posteriormente tornando-se campeã paralímpica. Depois de mais de 10 anos nessa condição, durante uns treinamentos corriqueiros na parapista, foi atropelada por uma bicicleta, passou 9 meses fazendo fisioterapia e voltou a andar! Preciso urgentemente do número de celular desse ciclista...

Ironia nº3

Dia calado pra dentro de mim. Lembranças da falta de não sei o quê. Eu sentada no colo de minha cadeira mais uma vez rabiscando a vida trêmula. Meus pensamentos espalhados naquela ventania de fim de tarde. Um ladrão me pegou desprevenida, entrou na minha cabeça e roubou meus planos mais puros e inocentes. Nessas alturas, ele deve estar rindo de minhas tralhas, de meus legos coloridos e meus lápis de cera. Os restos do assalto ficaram no chão da alma sem chances para reconstituição do delito. Os fragmentos que não se encaixam mais, não se convertem nem se modelam. Como se meus desenhos, meus projetos e planejamentos fossem revendidos no mercado negro e terminassem em pichação de baixa qualidade naqueles muros que ninguém mais vê, transformados em ruínas que não cercam mais nada. Melhor declarar perda total, formatar a vida e zerar o contador? Leiloar a sobra dos “bens” que se acuaram no coração? Resgatar a nobreza própria da duração de uma bolha de sabão ou de um bonsai? O que fazer quando o futuro ficou antigo? Quando insistir e onde desistir? Alguém por favor saberia me responder? Revire aí o baú... deve ter algo de reutilizável pra decorar sua tenda...volto ao verde que me cerca... hora de entrar, não devo me alongar nesses delírios, a noite está caindo. A escuridão me abraça e eu alheia aos ruídos inóspitos. Deveria sentir algum temor ou qualquer desconfiança naquele caminho fora do roteiro, longe da rotina, mas nada me ocorre. Lembrei-me de minha mãe me ensinando os medos com suas recomendações de defesa contra o desconhecido...não falar com pessoas estranhas, nem andar por lugares suspeitos...estranhas...suspeitos...ela partiu e esqueceu-se de me precisar como reconhecê-los...lembrei que dormi uma noite na casa de um taxista que tocava piano, porque descobri no meio do itinerário, que eu não tinha mais dinheiro pra pagar a corrida até meu destino...e da recepcionista do hotel que em que eu estava hospedada, que me deu a chave de sua casa alugando mais barato o quarto para eu conseguir ter minha semana de aula ...ou do argelino que encontrei na viagem de madrugada para minha seleção de mestrado que era o único passageiro com quem dividi um vagão inteiro do trem...e que por não haver mais vagas em hotéis para mim, “teve” que me hospedar escondido no seu quarto na residência universitária, me ceder uma roupa (a minha encharcada de resíduos da neve) e sua cama (indo dormir no chão)... e ainda dividir um jantar no escuro, improvisado com uma única cebola, macarrão e molho de tomate...portanto, o perigo é o desconhecido? Só haverá segurança quando eu for o desconhecido? "Peraí"...como é isso? Estou perdida nessa encruzilhada sem saber se devo ter medo do desconhecido ou se o desconhecido deve ter medo de mim... Em todo caso, confesso que sobre o perigo, prezado visitante, não me apressarei mais por causa deles, pois não sei o seu nome, nem onde mora... Aliás, tenho a impressão de que até fiquei amiga do medo para fazer dele meu aliado. Afinal, aquelas noites não exatamente dormidas na casa do desconhecido e regadas a adrenalina, nem sequer ameaçaram minha integridade emocional, física ou mental...ao contrário, me renderam lembranças maravilhosamente inesquecíveis como um filme de aventura...enquanto fui surpreendida covardemente ao sucumbir em um mísero degrau de arquibancada...cercada de seres da intimidade cotidiana...em um ginásio de esportes...no cenário mais familiar de minha vida. Dá para acreditar?

terça-feira, 14 de junho de 2011

Se quiser mudar meu mundo, faça de outro jeito

Falta apenas um exame a fazer. Estou no aguardo do chamado da internação. Não sei ainda quando nem por quanto tempo. Stand by...enquanto isso, meu corpo segue mudando. Emagreci...as pernas definharam e estão flácidas...perdi muita massa muscular...tortura da autoestima..., mas isso é o de menos. Conhecer e cultuar as entranhas desse movimento de "re" e "des" construção da imagem do corpo, é trecho constante da estrada de qualquer um...e como eu sei disso, vocês nem imaginam...afinal, este assunto foi o objeto de tantas leituras para a redação de minha tese (ironia nº2?). Ressignificar o que minha representação interna infere na silhueta externa, envolve plenamente minhas emoções e relacionamento com o julgamento social. Isto fez-me lembrar do tempo em que eu presumia que parte dos cadeirantes vestia calças esportivas para evitar os olhares externos sobre as ossaturas salientes das pernas, fruto do desuso... e que usavam tênis somente para combinar com o modelito. Não é nada disso. No meu caso, a vaidade perde espaço para o conforto e a praticidade na intenção de melhor valorizar a funcionalidade que nos resta. O uso preferencial de calças esportivas ou com elástico predomina simplesmente por causa da maior facilidade na independência de vestir-se...e os tênis, porque protegem melhor os pés contra alguma eventual colisão quando deslizam fora do suporte da cadeira em movimento. Aliás...a dificuldade de calçar os tênis, é a mesma de calçá-los em outra pessoa dormindo...sensação estranha. Tenho a impressão de ser uma cabeça atrelada a um tronco que arrasta um saco pesadíssimo da cintura pra baixo feito um guindaste, um pêndulo, aquela metade fantasma como um apêndice morto. Sinto dificuldades em manter um sono estável porque me mexo muito e me acordo por não conseguir desvirar-me num movimento fluido. A organização do dia deve ser sempre sistemática. Tento fazer "eliminações" quando vou ao banho, evitando muitos deslocamentos por causa dos transtornos da acessibilidade. Para as saídas, não posso esquecer de consultar com antecedência se o porta-malas do carro que vai me transportar tem a capacidade de comportar uma cadeira de rodas; caso contrário, saber se o proprietário não se importa em acomodá-la no banco de trás, sem nenhum passageiro a mais. Se for a restaurantes, cinemas, shows, tenho que lembrar de ter informações prévias sobre a acessibilidade e lugar do acompanhante, fazer reservas para evitar improvisação repentina de um outro plano, rezar para a vaga do carro não está ocupada ou bloqueada por uma corrente (Cadê o guarda!!!?) e se os banheiros são adaptados (e não estão trancados a chave!! Quem está com a chave?). Além disso, no momento, tenho que evitar permanecer muito tempo na mesma posição, ou usar meia especial ou tratamento injetável para evitar trombose. Afinal, o retorno venoso está diminuído. É... pense duas vezes antes de me convidar para sair! E se o fizer, não faça por educação ou por solidariedade, e sim porque de alguma forma faz questão de minha presença na sua vida e sente vontade de querer ainda e muito fabricar novas lembranças comigo se beneficiando da rica experiência do passo a passo dessa saga. Mas principalmente que não seja um sacrifício! Na verdade, eu não preciso que você faça por mim aquilo que eu posso fazer sozinha. Pode deixar, eu mostrarei minha condição funcional pra você. E para isso sua presença me basta. Ninguém entende nem imagina a dor do outro...é impossível. Só posso sentir a minha. Sofrimento é personalizado e certamente cada um sabe a aridez de seu caminho. Não se compara abstrações, elas são por natureza bem relativas. Eu só posso partilhar com meus pares as dificuldades semelhantes, as experiências em comum e no máximo buscar nisso tudo alguma razão para ser feliz. Voltar a andar não depende de mim, não quero ter essa responsabilidade nem essa obrigação. Entendo a intenção de vocês em não me deixar esmorecer, mas a forma de expressá-la muitas vezes me torna refém das expectativas. Essa certeza e essa garantia me pressionam e me pesam no esforço de me cobrar em corresponder às esperas. Faço todos os dias tudo para estar bem sem deixar de acreditar nem investir a fundo em minhas forças para voltar a andar. Rassurez-vous. Mas tenho me questionado sobre o assunto e sugiro que vocês façam o mesmo. Interroguem-se se isoladamente o fato de andar, fariam de vocês pessoas felizes. Eu me perguntei esses dias "Você era feliz quando andava? Estava feliz no dia da queda?". Pergunta mais idiota, afinal, muitas vezes estive triste mesmo "andando", porque provavelmente o fato de andar não era suficiente para reverter-me em felicidade. Isso é o mais irônico...ora, se eu me fixo a ideia agora de que voltar a andar representaria minha alegria suprema, porque então não pensei nos momentos tristes “pô, mas pelo menos eu tô andando!!!!!!"? Mas eu também poderia ter pensado "Se estou triste agora mesmo andando, imagina se não andasse!!?". Bem relativo...para onde vai essa minha reflexão? Ela me conduz a uma pessoa, que depois que ficou paraplégica, mudou tanto a vida para melhor que hoje não faria a menor questão de voltar a andar. É... isso existe, sabia? Tudo porque sua limitação abriu as portas para outro mundo. Não estou dizendo que ao invés de querer recuperar a função medular, vou ingressar a equipe de paratletas de não sei que modalidade e estrear em Londres 2012 nos paraolímpicos!!! (E será que ainda dá tempo, hein?). O que estou dizendo, é que apesar de hoje eu atribuir minha felicidade ao reestabelecimento da minha vida "bípede", desconfiem que outras opções também podem existir... quero mesmo voltar a andar (e obrigada por torcerem junto) ...mas pode ser que minha condição atual seja definitiva... e no mais, e as outras pessoas amigas ou outros anônimos no mundo, que já tenham posição médica definida? Será que eles também não merecem uma felicidade própria? Não deixem que a esperança da recuperação de uma funcionalidade desautorize outra possibilidade de ser feliz. O ser humano é capaz de adaptar-se as novas provações. No meu caso, me contento que queiram apenas meu "bem", sentem a meu lado e esperem comigo enquanto faço minha parte. Vocês que andam querem que eu volte a andar para ser feliz? Tenham então vocês a obrigação da felicidade pelo simples fato de andar! Sintam o prazer do impacto do pé no solo fazendo avançar a estrada. "Sigam aonde vão seus pés"...escalem as encostas...Esperança? Certamente...mas sobretudo queiram que o resultado final traga-me o vigor de uma vida feliz! Se quiserem mudar meu mundo, o nosso mundo, digam-me de outro jeito, façam de outro jeito. Tentem, portanto, “corrigir" esta espera desejando "que a felicidade ande sempre perto de mim".

segunda-feira, 13 de junho de 2011

O pequeno príncipe disfarçado de Thor

Parque da cidade...domingo. Calor no sol e frio na sombra. Ler um livro ou observar os passantes? Hesito. Em alguns metros dali, despontando do solo, um oásis no deserto: carrinho de água de coco! Um amontoado de peregrinos à espreita. Desisto. Monitoro o tempo na minha ampulheta mental para voltar pra casa. Meu rosto "crispé". Lembrei do moço suado em sua cadeira de rodas retirando as luvas ao chegar ao hospital: "sair de casa assim, só uma boa dose de insanidade, paciência e muita habilidade, viu? Vou te contar...". E eu que dos três, só conto com o primeiro... Volto a olhar o "vespeiro" e desanimo. Ensaio folhear algumas páginas suspensas por minha indecisão. De súbito me arrebato..."eu gasto muito mais tempo no banho, me enxugando, me vestindo, arrumando em volta, estendendo a toalha, organizando a mochila para sair de casa...sem esquecer nada e não deixar nada cair no chão... calculo previamente o trajeto, prevejo a falta de rampa e a sobra de canteiros altos, as inúmeras meias-voltas por causas das falésias desniveladas das calçadas...eu me eternizo nesse processo de desbravar a selva urbana. E ninguém tem a ver com isso porque ninguém tem culpa. Mas é isso que faz de mim uma prioridade, não por nada. Não devo me intimidar, não vou causar pena nem raiva em alguém sensato...não é injusto merecer adequação a minha necessidade, não é por minha causa que o mundo se atrasa". Volto a olhar a fila e entre minhas frequentes desistências e fatídicas insistências cotidianas, reajo...desloco-me em direção a "fonte"... o vendedor num olhar atento, por trás de todos larga um: "por favor, deixem a senhora passar...de 300 ou 500 ml?". As pessoas obedecem e aproximo-me dizendo "300", pensando no conforto da bexiga no caminho de volta. Percebo ao lado um garotinho vestido de Thor, mordendo seu martelo. "Mamãe, porque ela foi primeiro?". A mãe tenta disfarçar distraindo-o com algum atrativo sem nexo. Ele não se deixa levar e insiste sem tirar os olhos de mim: "por que, hein mamãe?". Dessa vez mais alto ela diz em um tom cordial e ameno: "Porque ela está dodói". Então eu olho para ele e rio com receio de levar uma eventual martelada na cabeça! Então ele inicia o duelo:

-Tá dodói de quê?

-Não tô doeeente... doeeente... eu só não ando mais. – Falei tentando esclarecer à minha maneira.

-Você não pode ir à escola?

-Posso sim – Ri e continuei:

-Faço tudo que todo mundo faz, só que de um jeito diferente.

Novo silêncio se fez. Recebo minha água, pago e antes de partir ele me requisita novamente:

-Por que você não pode mais andar?

-Lucas, deixe a moça ir. – Interveio a mãe.

Eu, em um gesto de cabeça, consenti a continuação do interrogatório instrutivo:

-Porque eu caí e machuquei a... (Medula? "e o que isso tem a ver com as pernas, moça?". Tentei prever a sequência do diálogo. Como então dizer a uma criança de 5 anos a relação da medula com o movimento das pernas? Dizendo! Pois elas são seres muito mais desenvolvidos que os adultos, fazem conexões menos equivocadas e tratam as diferenças com muito mais naturalidade!).

-...machuquei as costas com tanta força que minhas pernas não se mexem mais.

-Ah...fez curativo?

Destemido e curioso, o dono dos cachinhos de trigo não desistia como sua mãe, que já tinha aberto mão de contê-lo.

-Não precisou. – Falei abrindo a garrafinha de água.

-Tomou injeção?

-Muitas.

-E doeu?

-Um pouco. – Falei já dando goles na minha água.

-Você chorou? – Fiz um silêncio...deu vontade de dizer "ainda choro as vezes"...olhei pra ele, vi um rostinho de compaixão.

-Chorei. – Falei sem adicionar nada mais...

-Cadê sua mãe? – Perguntou ele.

Fiquei muda...um nó interrompeu minha respiração...não sabia o que dizer...não consegui abreviar, respondi sem pensar:

-Não sei.

-Você se perdeu dela? – Perguntou aflito.

A enxurrada já comprometia minha fala:

-Não, ela viajou. – Pensei ter finalizado com o assunto paralelo.

-Pra onde? – Ele insistia.

-Pra um lugar bem longe que não lembro o nome. – Eu disse, já sem fôlego.

Percebi que sua mãe já olhava para o outro lado, segurando sua mão. E ele continuou:

-E você ficou com quem?

-Com meu cachorrinho.

-Ela vem buscar você? ("ai Lucas, não me pergunte mais, por favor...")

-Não, eu que vou encontrá-la.

Não dava mais...eu não ia mais segurar. Olhei pra o outro lado fingindo inclinar a garrafinha para beber água.

-Como você vai encontrar ela, você não "sabe" andar?

-Não sei ainda, mas vou dar um jeito.

Não me contive, não tinha mais força pra impedir minhas lágrimas. Ele percebeu:

-Tá doendo, é?

-Hunrum. – Disse eu, sem palavras, tentando tomar o resto da água.

-Vou soprar pra passar logo.  – Disse ele, largando a mão de sua mãe, que segurou seu martelo, mas não o reteve. Ele aproximou-se de mim...inclinou-se e começou a soprar minhas pernas:

-Pronto, passou?

Coisa mais indefesa me consolando...

Eu fiz sim com a cabeça e disse:

-Já vou, Lucas. Obrigada, viu?

-Tá bom.

Contornei a cadeira pra sair quando ele se jogou no meu abraço num breve e eterno instante. Fechei os olhos e me despedi sem dizer nada. Ele seguiu andando segurando a mão de sua mãe de volta para seu planeta.

Saí dali e chorei compulsivamente por ter reencontrado a ternura nos braços de um principezinho disfarçado de Thor...

domingo, 12 de junho de 2011

Feliz dia do índio!

Com quase quatro meses de atraso a Saint Valentin desembarca no Brasil. Ontem o alvoroço nos shoppings deve ter sido imenso. Para as relações recentes...aquele romantismo aguçado...cartinhas de amor perfumadas, surpresinhas ao longo do dia...mp3, 4, 5, 1000 soltando a trilha sonora que mata...infalível. Já pararam para pensar quantas "primeiras vezes" acontecem nesse dia!!? Por favor, sejam mais criativos e mantenham-se virgens até amanhã! E os "reatados”? Há dois tipos...aqueles casais que estavam por um triz e configuraram a forte e saudável relação que precisava ser arejada...e aqueles do "vai e volta" que não acaba nunca...que no fundo ninguém mais acredita, mas como não chega nada de mais concreto, ficam empurrando a lambança falida. Conselho: aproveite o Dia dos Namorados para ficar solteiro meu amigo! "Ficar sozinho é pra quem tem coragem!". No mais, "me diz se é perigoso a gente ser feliz?". Na sequência, há também aqueles que se amam desde muito tempo...a minoria... porém, a criatividade anda limitada...flores, restaurantes, motéis, café da manhã encomendado, viagens...não tem mais o que inventar, né? Então, tá na hora de você compor um verso, desenhar uma flor, levá-la para um lugar secreto e deserto perto da natureza, dizer o que ainda está guardado, cantar uma música perdida no tempo, pintar uma camiseta com símbolos que só você e ele ou ela, podem entender. Riam juntos...sem receitas...faça algo com amor único...e não poderia deixar de falar...os rolinhos...esses que sustentam nossos hormônios e bom humor!! São sempre infalíveis, não cobram nada, não nos enjoam e de vez em quando viram o ombro amigo. "Pra você guardei o amor que nunca soube dar!". Dia dos Namorados sem namorado? O que é que tem? Como diria algum filósofo perdido no twitter "você não passa o dia do índio sem índio? Por que não poderia passar o Dia dos Namorados sem namorado?". Viva os solteiros e bem-amados! Seja capaz de querer “a sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta mordida” ou não queira nada. É mais vantajoso. Não queira nada tóxico. Areje a alma, abra espaço para quem impulsiona sua autoestima. Nada de esmolas ou migalhas. E para você apaixonado...curta e faça disso seu cotidiano, sua única chance...pare o jogo, a dissimulação, a manobra infrutuosa. Acorde e vá lá! A vida não é eterna... é quando, só o "agora é sempre".

sábado, 11 de junho de 2011

Se fosse assim...

“Professora? Tá me ouvindo? Aperte minha mão...tá sentindo minha mão professora?” ...visão turva, ruídos opacos e fluidos...os olhos piscavam várias vezes...senti frio...confusão mental, dificuldade em respirar... no chão...no chão do ginásio de esportes... estou trancada em mim......meus alunos ao redor ...vi alguém segurando minha cabeça. “putz...eu caí...desmaiei...não acredito...não consigo mais me mexer...não sinto meu corpo” ...tentei controlar o choro, porque mal conseguia respirar...queria gritar, me arrancando dali com toda força que não tinha. Parecia estar soterrada em uma camisa de força gigante... entendi o que estava acontecendo...lutando contra o desespero, pedi para avisar a meu irmão...Já rebobinei esse trecho mil vezes tentando refazer o momento em que eu estava descendo as arquibancadas...paro logo antes do local onde escorreguei...volto um pouquinho mais as imagens...aí sim...deixo cair um dos envelopes que eu trazia...e me agacho para pegar...desvio então do escorrego...ou então, lembro que deixei meu celular no carro e faço meia volta...ou ainda, desço, mudo a direção para falar com algum aluno que poderia estar ao lado ...faço mil maneiras de evitar o fato...mas ainda estou aqui, inerte... Penso então na moça que poderia ter colocado o cinto de segurança para não ficar tetraplégica ao bater a cabeça no teto quando passou no quebra-molas...ou no cara que poderia ter comido pizza ao invés de sushi para evitar ser infectado por uma bactéria que o deixou imobilizado e com respiração mecânica...ou ainda na moça que poderia ter evitado o uso de anticoncepcional para não arriscar baixar os níveis de uma proteína envolvida nos processos de coagulação sanguínea, já tendo ela carência desse elemento sem saber...e se...e se...e se...é brutal, cruel, insano...tudo muda e é grave sim...porém não vale a tradicional questão: Por que aconteceu comigo? Não é bem assim... que tal questionar-se com: E por que só tem que acontecer com os outros?  E por que não comigo? E por que não com você? E não adianta se transformar em madre Tereza de Calcutá de véspera, tá? Não tem a ver com merecimento.  Se fosse assim, a sede do governo estaria instalada no hospital, no setor de LM completa, com respiração mecânica, sonda e nenhuma pálpebra se mexeria!

A hierarquia desse esforço faz de alguém mais ou menos culpado?

Improvisei um acento para arranhar a tinta no caderno. Com o calor da mão na caneta, com a pressão dos dedos no papel sem freio, derramei a alma num rabisco sem direção. O desenho da frase se empenhando sem sucesso em me traduzir. Partilho então incógnitas vividas, lamentadas ou jamais experimentadas. Não vislumbro mais o horizonte. De onde estou, alcanço apenas alguns metros esbarrando-me em minhas próprias limitações. Eu ali, velada pelo Saramago ensaiando a minha própria cegueira. Circulo em uma ilha móvel que me separa do que até então eu representava. Olhares me devoram, me negligenciam, me navegam. Muitos piedosos, outros desprezíveis, alguns destemidos. O único ponto em comum entre eles é a culpa, talvez. Esse abismo que emudece qualquer vã atitude e se pune por pensar em ter a chance de ter talvez o que o outro deseja e que nunca poderá alcançar.

- Come peixe? – Disse a copeira da radiologia interrompendo minha "abdução" interna.

- Como sim – Respondi assustada.

- Melhor levantar os braços da cadeira pra se apoiar na mesa. – Disse ela.

Assim fiz e ela retomou mostrando sua experiência em perceber minha inexperiência:

- Faz pouco tempo, né?

Deu vontade de dizer "Depende, pra mim parece uma década". Mas me contentei em dizer apenas:

- Dois meses.

- Alguma melhora? – Seguiu ela no seu interrogatório camarada.

- Considero melhora alguns avanços. Retirei a sonda, a fralda... – Eu disse, timidamente.

- Então já controla bexiga, né? – Ela indagou.

- É, controlo. Também não tinha sensibilidade nas pernas e agora já tenho. – Empolguei-me e prossegui:

- É meu maior ganho! – Disse eu, apontando orgulhosa para os pés que prontamente obedeceram a meu comando mexendo as pontas vigorosamente.

Ela me fez sinal de positivo e ao mesmo tempo pegou outra bandeja de comida e deixou na mesa ao meu lado esquerdo, onde surgiram um rapaz cadeirante com sua esposa. E seguiu me dizendo:

- Isso é bom, dá esperanças, né?

Olhei para o lado e vi que ele era "tetra". Perguntei-me desde quando ele estava ali. Se desde a sonda retirada, a fralda descartada, a sensibilidade recuperada...respondi incomodada:

- É...nem sei...

Ela retomou:

- Mas são sinais de melhora.

Eu num estranho mal-estar, relativizei:

- É...mas não quer dizer muita coisa. Eu nem mexo muito e no mais, faz tempo que não evoluo. Eu disse olhando pra eles, querendo forçar um sentimento de cumplicidade. E ainda completei com a frase daqueles dois desconhecidos do corredor:

- "Mas o importante é que estamos vivos".  – Não convenci nem a mim.

Ele não deu uma palavra, só mastigava a comida levada a boca por sua acompanhante. E ela soltou algo como "é mesmo" só para eu não me sentir isolada na minha sequência. Eu fiquei sem saber o que dizer. Despedi-me momentos depois com estranho pesar de poder rolar minha cadeira sozinha e ele não. Entendi agora o "não sei o que dizer" dos que andam...ou até a tentativa desastrosa de amenizar o sofrimento usando artifícios infrutuosos. Uma mistura de impotência e obrigação em fazer algo.  Novamente me veio a sensação do livro que li sobre aquela história contada pelo Jean-Dominique Bauby que depois de um AVC, de todo o corpo ele mexia apenas a pálpebra esquerda. Através de suas batidas pode dizer "sim" ou "não" às letras apontadas em um papel por sua fisioterapeuta para se expressar formando frases.  Descobri no meio da minha leitura que cada letra de cada palavra daquele texto tinha sido expressa pelas piscadas de seus olhos. Exato, ele escreveu um livro inteiro pelas piscadas de sua pálpebra. Ainda tenho essa sensação indescritível na alma. Eu me perguntei se elas (as pálpebras) foram inundadas de emoção quando as minhas estavam sendo. Portanto, caro leitor, nem meu companheiro de almoço que movia a cabeça, enxergava, ouvia e podia mastigar, nem eu que rolo minha cadeira, nem você que anda escrevemos pelas mãos ou nenhuma outra parte do corpo o que o Bauby expressou. A hierarquia desse esforço faz de alguém mais ou menos culpado?

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Blackouteando o resto do mundo: free hugs

Há dias que nem nascem nem morrem, não amanhecem nem anoitecem, não despertam nem adormecem. Viver apenas em um "lapso de tempo". Coisa que vem para cumprir tabela. Algo que deve apenas constar e é inevitável, incontornável. Está previsto no calendário, fazer o quê? E mais: são os dias mais longos, nem se apresse. Parece que neles estão previstos algumas horas a mais. Os fatos parecem acontecer sem o menor sentido. O significado se esclarecerá um dia, quem sabe, no seu tempo certo e se você estiver atento para perceber. É... estou colecionando dias assim. Alguém quer trocar uma duplicata? Olho para cima, o sinal de trânsito emperrou. Ventania empoeirada rodopiando, cheiro de perfumes surrados de fim do dia em meio a odores dos escapes dos automóveis, sinfonias ensurdecedoras de motores e buzinas...coral de falas desencontradas, pessoas "epileptizadas" de um lado a outro dependuradas em seus celulares... umas comendo baganas, outras olhando além, a procura do nada...algumas gastando as calçadas com seus olhares, como girassóis cabisbaixos. Eu, imóvel e invisível, estacionada em uma esquina do mundo. Senti vontade de apagar os olhos e desligar os sons, voar sem destino como o "Ramón Sampedro" incorporado por Javier Barber em "Mar adentro". Fiquei me perguntando o que mais me fazia falta além de andar...hum...bela questão...digna de ser elaborada para uma de minhas provas...sem dúvida...sinto falta de um abraço. Não daquele cumprimento camarada, meio de "banda", sabe? Mas daquele laço humano que aquece o coração como o ninho enternecido. Aquele afago que fala melhor do que qualquer palavra. Uma entrega de sentimentos bons, cúmplices, verdadeiros, que parecem não ter fim, imortalizado naquele breve instante..."blackouteando" o resto do mundo para fundir em química, quem somos. Ele tem o poder de abrigar a intimidade, de fazer as pazes, de confortar. Ele encerra ou antecipa alguma saudade, longa ou breve, comemora o reencontro, faz perdurar a despedida...corporalizando um “favo” de amor...saudades de você abraço.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Pegue essas asas quebradas e aprenda a voar



Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life 
You were only waiting for this moment to arise
Blackbird singing in the dead of night
Take these sunken eyes and learn to see
All your life
You were only waiting for this moment to be free
Blackbird, fly, blackbird, fly
Into the light of the dark black night
Blackbird, fly, blackbird, fly
Into the light of the dark black night
Blackbird singing in the dead of night
Take these broken wings and learn to fly
All your life
You were only waiting for this moment to arise
You were only waiting for this moment to arise
You were only waiting for this moment to arise


Lembrei...e era tudo apenas...realidade

As paredes penduradas no teto e ele ali, como uma tenda armada, segurando uma tela branca, enorme. Fragmentos de imagens sobrevoam em um silêncio oco na alma. Inevitável...a água morna não tardou a me afogar os olhos. Lembrei da época em que eu pensava que as guerras só existiam em preto e branco. Lembrei de como fiz uma cicatriz no peito do pé com o ferro do pedal no dia em que aprendi a andar de bicicleta. Lembrei do medo que tinha de minha mãe me esquecer no colégio apesar de não chorar quando ela me deixava lá. Lembrei de quando fui campeã no basquete pela primeira vez, do dia em que fui aprovada no vestibular, de uma mendiga que insistiu em me chamar na rua só pra me dar uma “ficha” telefônica. Lembrei do dia em que ganhei meu primeiro violão, que eu já contei os ponteiros se mexendo durante mais de 1h30 para me fazer adormecer e contei feito os grãos de uma ampulheta as gotas de 500ml de soro caindo para me manter acordada. Lembrei da mocinha que escrevia cartas a noite para o amado à luz de vagalumes guardados em um frasco de vidro. Lembrei da senhora cega que me deu adeus de longe só por saber que eu estava na direção de seu olhar. Lembrei do pai e dos dois filhos que rasparam a cabeça porque a mãe estava fazendo quimioterapia. Lembrei do meu relógio que despertava no meio da aula na quadra só para lembrar que era hora do pôr do sol. Lembrei do trem que perdi e passei a noite inteira sentada na porta de um prédio desviando do vento gelado porque a estação tinha fechado. Lembrei da sensação da brisa no rosto e do reflexo de meu sorriso no vidro da janela do trem, na volta de minha defesa de mestrado. Lembrei do meu choro emocionado por causa da inesquecível surpresa que tive em uma ponte em Paris. Lembrei do desolamento por ter perdido o show da última tournée do Rod Stewart porque tinha ido um dia depois da data marcada. Lembrei do dia em que acordei no escuro, no meio da madrugada, me tremendo de frio trancada em um vagão na garagem do terminal do metrô. Lembrei de ter sonhado com meu cachorrinho branco antes mesmo de eu tê-lo em minha vida. Lembrei da felicidade que o assobio de minha tia me fazia anunciando sua chegada lá em casa. Lembrei que esqueci da história do negrinho Zacarias que meu pai contava. Lembrei de meu 1º irmão ter compreendido eu ter perdido sua defesa de mestrado, da risada de meu 2º irmão ao ficar tonto quando eu o rolava de dentro do tapetinho da sala, de meu irmão caçula ter apertado meu dedo espontaneamente no berço no primeiro encontro que tivemos ainda na maternidade. Lembrei da dor de tirar sozinha as roupas de minha mãe do guarda-roupa dias depois de sua "partida". Lembrei de quando minha avó já com Alzheimer ao me ver depois de tanto tempo, bateu palmas de alegria me confundindo com minha mãe, já falecida. Lembrei de quando acordei na UTI um dia após minha queda...e era tudo apenas...realidade.

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Façam-me o favor!!

E agora? Não tem táxi aqui...terminei uns exames e sinto fome, quero ir para casa. Minhas pernas estão geladas e inchadas. Olhei a minha esquerda o shopping em diagonal com o hospital. Pensei: "dá pra ir, será?". Bom, não tinha escolha, vamos lá. Virei à esquerda e fui pela calçadinha interna do hospital. Em menos de 5 metros eu descobri que tinha que fazer o "alinhamento e balanceamento" da minha cadeira de rodas!!! Ela está puxando para a esquerda. É, cadeira de rodas facilita muito sua vida quando você não anda, sabe? O problema é quando ela tem vontade própria e quer decidir a vida dela, porque a minha vontade era somente chegar naquele shopping se ela não se importasse!!! Enquanto eu estava retrucando e a manuseando, vinha uma colega cadeirante em minha direção. A calçada estreita, pensei: é agora, vamos colidir!!! Não vou ser mais somente "para" e sim "tetra" ou quem sabe até "penta". Deixei meu drama de lado junto com minha cadeira...fiquei à beira do precipício (era apenas na borda do meio fio! Dá no mesmo!). Mas...nada aconteceu. Quando levantei os olhos, vi uma rampa! Aliás, vocês sabem o que significa uma rampa? Rampa é uma ferramenta arquitetônica de menor tortura que as escadas para ligar dois pontos em alturas diferentes. Os arquitetos entediados, acharam por bem se divertir e criaram astuciosamente vários graus de dificuldade: inclinações diferentes, curvas sinuosas e as vezes alguns solos trepidantes! Pensei: se eu escapar deste penhasco, poderei de todo jeito morrer do coração! Exagero a parte, nada disso aconteceu. Mas descreverei: se você não tiver um amigo que use uma cadeira de rodas, experimente subir uma ladeira, sentado em uma cadeira de escritório (com rodinhas, é claro), sem tocar o chão. Use dois bastões de apoio no solo para deslocar-se e me digam o que acontece quando as rodinhas param de deslocar-se para frente. Sufoco! Minha mão esquerda começou a doer muito, criou um calo, mas eu não podia ficar ali na metade do caminho esperando Godot! Consegui, enfim! Se vocês não estão mais aguentando essa leitura, imagine eu para percorrer esse trajeto! Gastei 13 minutos em um trajeto que se gasta 5 segundos para quem anda. Esperei a parada cardíaca, mas como ela não veio, pensei "o jeito é continuar...mas agora é moleza, calculei: plano até a entrada do shopping e uma rampinha curta lá mesmo...tenho ao todo 2 vias de mão e contramão, ou seja, 4 pistas". “Cê que pensa”... tenta atravessar a 1ª rua...os carros tendo a opção de seguir reto ou entrar à direita e você lá, com a mão na roda tentando adivinhar o que eles vão fazer. Aliás, de onde tiraram mesmo que a expressão "uma mão na roda" é coisa fácil, hein? Fala sério! Vou lá ... o jeito é tentar o suicídio e torcer para não dar certo...meti a cara e atravessei quase fechando os olhos! Quando vi...tinha que subir aquele meio fio pseudoacessível do canteiro para ir para o 2º round! Aí sim, a mão na roda apareceu dizendo "quer ajuda?" Eu quase disse "Quero por favor, você pode me levar nos braços!!!?". E aí fui guiada até a porta do shopping. 25 minutos para atravessar a rua! FAVOR Nº 1: sempre perguntem a uma pessoa com deficiência se ela precisa de ajuda. Pode ser que ela recuse, mas pode ser que precise também. Eu ia apenas pegar um táxi naquele shopping, mas nessas alturas dos acontecimentos, eu precisava IR AO BANHEIROOO!!! E é claro que o banheiro de deficientes estava sendo usado por uma pessoa que anda (um andante, a partir de agora). E pela demora, ela só podia estar muito mal! Como fazer quando precisamos fazer xixi e não podemos "andar" para um lado e outro para passar a urgência? Será que rolando a cadeira pra lá e pra cá dá certo? Matem sua curiosidade: não dá certo. Fiquei pensando na tal "bolsa" do cara lá do corredor da radiologia. Eu não usava a bolsa porque minha bexiga é neurogênica (retinha em princípio grande quantidade de urina). O problema é o mal-estar que se instala. Suor frio, dor de cabeça, um pouco de tontura quando a gente tem que fazer o esvaziamento vesical, ir ao banheiro em função da quantidade de água ingerida e não vai. Enfim, a criatura andante saiu do banheiro! E de fato! Descobri qual era seu problema! Aliás, ela o deixou registrado de lembrança no vaso, caso eu tivesse alguma dúvida! Era exatamente o que podemos chamar de uma "obra" de arte! Como não posso mais "flutuar" sobre os vasos sanitários como fazia nos banheiros públicos, decidi procurar outro banheiro adaptado. Aliás, deixo registrado: a higiene nesse processo de esvaziamento é uma condição muito séria para evitar infecções em pessoas com deficiência. FAVOR Nº 2: Não usem banheiros adaptados se você não tiver uma deficiência que justifique! (ps.: deficiência não se estende a alguém que está apertado, tá? E aposto que você já fez isso!). Saí dali desesperada! O próximo banheiro era no andar de cima, claro. Fui para a frente do elevador tentar minha sorte. O elevador chegou enfim, mas estava lotado e ninguém ia descer ali. Não havia espaço para a minha cadeira, portanto, não consegui entrar no elevador. Não preciso dizer que esperei 3 vezes o elevador subir e descer, não é? FAVOR Nº 3: Se você estiver no elevador lotado e um cadeirante estiver do lado de fora esperando para entrar, saia de dentro do elevador e use as escadas rolantes, se você puder andar, porque ele não tem como fazer o que você pode fazer!!!! Entrei e enfim pude ir ao banheiro. Fiz o trajeto de volta ao térreo para pegar um táxi. Mas tinha um alecrim dourado estacionada na vaga de deficiente bloqueando a rampa de acesso, esperando o filhinho burguês comprar seu sorvete! Tinha fila para sorvete! Ela olhou e disse "é rapidinho". E eu ali, esperando que a vida dela se resolvesse. FAVOR Nº 4: preciso dizer esse?

Você é para?

Corredor da radiologia...

Desconhecido 1: - Você é para?

Desconhecido 2: - Sim e você?

Desconhecido 1: - Também, 10 anos de estrada. E você?

Desconhecido 2: - Eu 4. Mas estamos vivos, graças a Deus.

Desconhecido 1: - Podes crer.

Silêncio longo...olhares para minha direção.

Desconhecido 1: - E você?

Eu: - Eu? Não sei. Ainda estou fazendo exames.

No balãozinho acima da minha cabeça: "sabia, sabia que eles iam falar comigo!!!! Tinha certeza!!! Agora vão perguntar um monte de coisas que não sei responder, quer ver?"

Desconhecido 1: - Sim, mas você tem domínio das pernas?

Eu: - Não.

"Não disse!!! Pile poil, ma poule!!!” –  Tradução: “bem na mosca, minha filha!!!”

Desconhecido 2: - Mexe os braços, as mãos, a cabeça, parte do tronco?

Eu: - Sim.

Desconhecido 1 e 2 (em coro): - Então é para!

Eu: - Ah tá, então eu sou – Soltei aquele riso mais sem graça.

Desconhecido 1: - Tem bolsa?

Eu: - Como? Mochila?

Desconhecido 1: - Não, sonda.

Eu: - Ah tá. Não mais. – Eu respondi já com Vergonha de ser cadeirante novata.

Desconhecido 2: - Sorte sua, é o mais chato.

Eu: - É... eu sei.

Desconhecido 1: - Vai se internar?

Eu: - Vou. Não sei quando ainda – Pensei "Melhor responder adiantado logo".

Desconhecido 1: - Vão te ensinar a trocar de roupa sozinha, a empinar a cadeira para subir degraus. Transferência. Eles são muito bons aqui.

Eu:- Hum... (no meu balãozinho secreto: "que merda...eu quero é andar!").

Desconhecido 2: - Foi o quê?

Eu: - Como aconteceu?

Desconhecido 1: - É.

Eu: - Queda.

Desconhecido 1: - De moto?

Eu: - Não, de arquibancada.

Desconhecido 1: - Já vi de tudo aqui. É sua "primeira" vez aqui?

Eu: - É... ("Como assim? É sério que vou ficar vindo?").

Desconhecido 1: - No começo é ruim, depois você se acostuma.

Eu: - Hum... ("Caraca, quer dizer que sou mesmo "para"?").

"Fulano de tal" – a enfermeira chamou um dos dois e nos dispersamos.

"Não se afobe não que nada é pra já"

Consulta longa e minuciosa. Bateria de exames ao longo da semana. Impecáveis serviços. Outro planeta. Meu nome ia sendo chamado a cada exame aparecendo em uma televisão interrompendo a emissão do programa do canal aberto. Todas as pessoas treinadas para dar suporte. Todos os espaços adaptados às minhas necessidades. Todos os "passantes" carregando uma história no olhar, limitações recém-chegadas, outras já mastigadas. Nervosismo, insegurança, expectativa. "É muito cedo para dizer algo, só em 6 meses a 1 ano". 1º balde de água fria. "Seria interessante que você encomendasse uma cadeira de rodas adaptada a seu caso e respeitando suas medidas". 2º balde de água fria. Excesso de prudência ou introdução à nova realidade? Seguindo – tratamento contra trombose. Completando a agenda? Aulas sobre lesão medular, nutrição e esvaziamento gástrico. E por fim, internação programada. Esta, em espera. Dias infinitos, contínuos, intermináveis.

"Céu de Brasília, traço do arquiteto"

Quem já veio aqui sabe que esse céu do cerrado conhece muito dos transeuntes. E de mim então, nem se fala...sim, já morei aqui e tenho uma "teia" de amigos que nunca saíram de dentro da alma. Entrei em contato para dar a notícia da minha queda, da consequência e da minha vinda para internação no hospital de reabilitação. Peguei minha agenda por ordem alfabética decrescente. A primeira amiga a quem contei, não era minha amiga mais próxima. Ela me ouviu como se não acreditasse no que eu estava dizendo, tamanha era a fatalidade. Ela só disse: você vai ficar na minha casa até que seja internada. Vou cuidar de você e se for preciso, farei ajustes arquitetônicos no banheiro ou onde você for transitar. E aqui estou, protegida por cuidado e carinho nesse novelo de amor.

Aqui é clima de deserto, tem chão vermelho do barro, pequenos labirintos gêmeos espalhados no planalto, um lago brotado propositalmente. Única cidade do Brasil verdadeiramente cosmopolita: gente de todo Brasil e de todo o mundo por causa das embaixadas. Brasília sempre representou para mim descobertas fatais, daquelas que mudam o sentido da vida. Um divisor de águas. Causas e consequências à parte, posso dizer que bifurcou minha vida e mudou a mão do meu trajeto. E sempre bruscamente. Exemplos? Reviravolta nas relações afetivas. Outra? Foi a porta de minha volta para o Brasil depois de anos de França. Mais uma? Descoberta da carreira acadêmica na universidade. O que será que Brasília me reserva dessa vez?


terça-feira, 7 de junho de 2011

Postagem técnica: situando a condição atual.

Inventar ou dar outro significado a vida não é brincar de dicionário – é brincar de viver ao invés de somente existir. Este tem sido meu trabalho cotidiano. Desde aqueles avanços todos pós hospital, não progredi mais. Muita gente do bem me visitou: alunos queridos me fazendo homenagens – tanta reza, oração e meditação numa entrelaçada comunhão de religiões e pedidos comuns; amigos do colégio me fizeram visita surpresa, amigos recentes e os mais antigos rondando, meus manos quando puderam. Recebi torpedos, scraps, e-mails, postagens e telefonemas constantes. Todos eles me fizeram sentir menos ilhada na minha "poltrona", deixando meus dias mais providos de alimentação quentinha, carinho e fé. Também tive quatro cuidadores pacientes que se revezavam 24h aturando minha dependência. Outros amigos assumiram meus afazeres profissionais sem hesitar – nunca os esquecerei...são minhas pernas agora. Sim, os curiosos estavam presentes também. Gente que nunca se interessou pela minha vida, mas checaram como ela estava para contá-la à sua maneira. Mas confesso que eu me sentia constrangida ao ouvir a esperança das pessoas. Era como se eu fosse jogar uma partida de basquetebol e todo mundo tivesse ido assistir e esperasse minha vitória por terem decidido que eu era favorita, mesmo sendo um esporte que depende de muitos outros fatores extras. Ou frases como "Que bom ver que você está melhorando!", "Já está andando? Não? Mas vai andar logo, logo!", "Que susto você nos deu!".

Eu não me sentia melhor em nada! Eu estava em uma cadeira de rodas! E me angustiava por correr o risco de decepcioná-los em suas esperas. E se eu não andar mais? O que essas pessoas dirão a seus Deuses? Ou será que eles que terão que dar-lhes satisfações? Não conheço a lei que rege as energias, nem as relações dos mortais com suas crenças. Sei que o tempo e a paciência são coisas que torturam, mas a incerteza...essa... desarruma a casa como um furacão. E a lentidão dos minutos de fato enchiam minha vida de leituras incompletas...dessas que nos levitam, plenas de sonhos inacabados, de planos despedaçados. E meu coração coador...senti um alívio estranho por minha mãe não estar mais vivendo. Ela ficaria inconsolável se me visse assim. Fui invadida por um silêncio ardido, me escondendo das esperas entusiasmadas por dias melhores, medo de querer o desnecessário, de choramingar a vida ativa ficada no passado...lembro do Lenine ditando todos os medos naquela música...fiquei muitos dias improvisando a vida. Enquanto isso, minha fisioterapia em sessões realizadas em casa por um anjo que me caiu do céu, encerrou-se, e recomeçou na neurologia da universidade sob a regência de um par de alquimistas (uns fofos) ...na verdade, tudo isso estava acontecendo enquanto eu esperava uma vaga muito concorrida para consulta no hospital de Brasília. Um hospital referência na reabilitação aqui no Brasil, de difícil acesso, se não fosse a mobilização dos amigos do colégio. E de fato, agora...já estou em Brasília hospedada no ninho de uma família adorável.