segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Quando a vida arde...

O óbvio prega peças...leituras, vozes, concentração, clique de telas, dedos correndo nos teclados...prazos, datas, agenda, calendário...tenho que cumprir...a rotina voltou com força para os meus braços e eis que é muito bem-vinda... Consegui alcançar o trem da história que havia partido sem mim. Tudo mudado...alguma coisa tomou outro tom, estranha linguagem, obsoleta tradução. Os sons precisos se amortecem longínquos vez em quando, dando lugar a pensamentos, sentimento de distância, recuo. A vida não se importa quando nos sentamos na borda para refazer o fôlego porque ela segue impiedosa, voraz, apressada. Fui ali, encolhi-me em uma bolha e quando voltei, retomei a sequência, perdi o fio da meada... sem entender o que aconteceu nos capítulos estagnados de minha vida. Uma linha tênue, rasa, reta, morou na lacuna como um traçado morto, sem ação nem vida. Juntei o amontoado de papéis sobre a mesa, encaixei os livros na mochila e já nem ouvia mais os recados, os afazeres. Meu olhar vago no horizonte curto. Lembrei do clima da volta do Noland interpretado pelo Tom Hanks que foi o náufrago solitário vítima de um acidente aéreo, resgatado depois de 4 anos, confinado naquela ilha deserta. Tudo tão sem significado, tudo tão diferente de antes...antes do acidente ele só pensava em bater recordes vencendo o tempo...quase isso em mim...irônico, mais uma vez...sigo, me despeço, digo "ok" para todos os afazeres, compromissos, obrigações. Saio sem pressa, andando por aquele lugar tão familiar e ao mesmo tempo tão modificado. Cumprimento alguns passantes como se revisitasse um set de filmagem. Atravesso a catraca da saída, visualizo na frente do prédio a vaga para portadores de deficiente físico repleta de motos..."perdoe porque eles não sabem o que fazem?". Espero sinceramente que eles não saibam nunca um dia o que significa ter que ocupar aquele lugar por direito... "conquistar" aquele "privilégio". Mas não resisti e falei para o motociclista que estava chegando:

- Por favor, você pode não estacionar aqui. Mas pode me ajudar a deslocar as outras motos?

- Mas é jogo rápido.

- Eu sei disso... a vida da gente pode mudar bem rápido mesmo. De uma hora para a outra a gente guia uma moto e depois vai para uma cadeira de rodas.

- Vixi que trágico. – disse ele rindo e continuou:

- É só pra pagar uma conta, tô atrasado e se estacionar longe, já viu, né? Vou ter que vir andando e gasta mais tempo. Mas se chegar alguém aí você dá um grito e eu venho tirar a moto.

"Se eu tiver que vir andando"...nem acreditei no que ouvi...um ensaio sobre a cegueira novamente...a civilização a beira de um colapso...se ele não quer perder tempo fazendo aquilo que pode fazer, imagina o tempo e o esforço que perde alguém que não tem escolha, estaciona longe e vem tocando a cadeira de rodas ladeira acima porque ele não pode chegar atrasado? Retomei a fala:

- Posso fazer uma pergunta?

- Diga. – disse ele, já fora da moto.

- Se tivesse um guarda de trânsito aqui, você se importaria de chegar atrasado?

- Aí já é uma questão de multa, não sou otário e ia me virar. Por quê? Vai chamar o guarda, é?

- Não, não... era só para saber mesmo o que tem valor na sua vida. Obrigada.

Meu mundo paralelo gritando...saí andando sem olhar para trás...a vida arde.



quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Go Kalina!

Era sexta-feira, 15 de julho quando me firmei entre moletas pela primeira vez. Já descrevi isso antes...mas ainda não me convenci de ter transcrito a sensação na íntegra...passei dias acordando durante a noite para verificar se minhas contrações eram reais ou coisa de sonho, como aquela sensação do contrário do alívio. Sim, eu acordava assustada para checar meu ganho motor. Acordava para saber se minha felicidade tinha sido efêmera. Aliás, preciso ir além da descrição dessa sensação por outra razão, por um detalhe fundamental e comovente. Estremecer no sensor das forças, latejar os dedos dos pés na irresistível vontade de coçá-los com vigor provavelmente por causa da circulação sanguínea espalhando-se nas artérias e revitalizando a pele e tirando-me da estagnação. Nada disso, ou tudo isso, me resgata de retorno a borda da vida. Mas anuncio... coincidência ou não, dois dias depois de me colocar de pé apoiada nos acessórios, apesar do confinamento da internação, "corri" colada nas costas de uma amiga de infância, durante os 42km de uma maratona mundo a fora. Ela me "carregou" durante 4 horas 13 minutos e 36 segundos em minha primeira maratona. Filmou na retina paisagens do caminho, partilhou comigo sensações de superação, lado a lado. Era dor, cansaço, emoção. Ouviu meu nome nos gritos dos anônimos durante o percurso ..."Go Kalina!!!". E até uma cadeirante urrando palavras de incentivo. Minha amiga ainda não sabia do meu progresso, nem dos meus sonhos de poder avançar novamente no mundo de maneira autônoma, e quem sabe até, com as próprias pernas...e mesmo assim, me arrastou em seu fôlego, como tantos outros amigos e anônimos o fizeram a sua maneira...desde a intenção positiva, a presença, as promessas, os pedidos em seus credos, a torcida permanente, homenagens, sacrifícios.

"Tem coisa que não tem nome"...não posso chamar apenas de "substituição" o ato de alguns colegas assumirem todos os meus compromissos acadêmicos, em um semestre em andamento, defendendo meu nome, e tentando imaginar como eu resolveria ou faria algo se estivesse ali...eles me representaram...uma carga impensável de trabalho somada ao que eles já tinham...não posso chamar somente de "solidariedade" o fato de ter me carregado no colo pra o banho, pra o sono, médico ou fisioterapia, pra vida, ver o mar, pessoas importantes...cuidado com tanto afeto de meu cachorrinho lhe suprindo qualquer vazio ou dúvida sobre minha volta pra casa, pensado em um travesseiro melhor, almofada adaptada, proteção contra escaras, óleos para hidratar a pele, ou outros acessórios para meu conforto, provido meus armários de alimentação, dirigido meu carro, empurrado minha cadeira, exercitado minhas pernas por mim, resolvido minhas burocracias de trabalho, estudo, vaga na internação, passagem aérea, mudança de apartamento. Não posso nomear somente de "acolhimento" o que aconteceu em Brasília... o "berço" preparado, o café da manhã, a privacidade e respeito por meu silêncio quando minha alma só queria calar a dor...companhia, saídas, carinho, ...como a passagem sincrônica de um bastão. Meus "cuidadores" em Pandora...de treino a treino, remédios, escuta, comida. Meus visitantes, indefesos diante do novo estranho...não tenho a menor capacidade de descrever os olhares distantes e silenciosos, a alegria evasiva de meus companheiros avatars com quem aprendi o significado da continuação, esperança no perdido e paciência na demora. Não tenho como esquecer o incentivo dos que me fizeram falar, e exigir a criação do blog para ter notícias minhas. Não tenho meios para definir o valor disso tudo. Não sei conceituar o perdão concedido por todos eles a meu isolamento, a minha retração, meu choro irritado. Só sei que causei preocupação e tristeza a quem só merecia minha alegria. Então, hoje presto minha sincera homenagem a todos, sem exceção, que se sentiram e estiveram de alguma forma perto de mim, me trazendo nas costas como essa maratonista valente que configurou metaforicamente cada um deles, com todo esse sentimento de carinho, pelo qual serei eternamente agradecida. Go Kalina! E eu fui!

A você Van, por ter dado um nome ao que não tem nome, por ter representado o gesto de cada protagonista de meu trajeto e descrito com sutileza em nome de todos, o valor da partilha e amizade.





Fechando o parêntese...vírgula

Não, ainda não acabou...meu manuscrito está vivo como meu coração firme. Não abandonei o passo. Foi apenas uma pausa, na tentativa de alcançar a vida sem perder o fôlego. A volta, o aeroporto, reencontros, surpresas, choros. O cheiro de meu cachorro de volta pra mim. Dias seguiram...rotina, trabalho, amigos, casa nova. Recuo como em um filme. Tenho vontade de ganhar o mar. Tanto a fazer e mal sei por onde começar. Joguei fora as preocupações patéticas do antigo futuro, me desfiz do que não me cabia mais. Leve, sem amarras, seguindo. Trago coragem e planos. Tenho sede de justiça pelo respeito aos que têm prioridade e esperança nas mentes que sonham e lutam em tornar andantes aqueles que perderam seu passo...nem heróis nem coitados dos quais faço parte porque também fui ferida pelas fatalidades, e respingou em mim para sempre. Revi minhas queixas e raspei as estampas sem cor. Agora vou tocar o rumo, sem tormento porque "Minha arte é brincar de renascer".