segunda-feira, 25 de julho de 2011

Tudo novo de novo

Todos os dias, depois de meu acidente, entre 7 e 8h da manhã, eu recebo um torpedo com palavras de fé, citando a bíblia. Número desconhecido, texto sem assinatura. De antemão confesso: não tenho religião, portanto não frequento lugares que me norteassem pessoas suspeitas do envio. Depois de um mês, não me contive mais, enviei um torpedo em retorno agradecendo as palavras e querendo saber quem era o (a) interlocutor (a). Não obtive resposta além da continuação dos torpedos matutinos que muitas vezes me acordavam com seus bipes. Então não insisti. Para receber aquela reação como algo bom, preferi interpretar o silêncio como um "não importa quem eu seja, apenas saiba que penso em você todos os dias ao acordar e tenho fé que tudo ficará bem". Bom...na verdade tentei me colocar na pele dela. Antes de vir à Brasília para o tratamento, comecei a frequentar a fisioterapia na Universidade onde trabalho. Certo dia decidi aproveitar e almoçar na praça da alimentação antes de voltar para casa. Fiz o pedido e aguardei. Uma senhora que servia na lanchonete aproximou-se sorrindo:
- E então, como você está?
- Na mesma, continuando...
- Sou eu quem envia torpedo pra você.
Fiquei muda pela surpresa. Eu não a conhecia a não ser dali, rápido entre um intervalo e outro. Eu ri e disse:
- Ah...realmente eu recebo seus torpedos todos os dias...obrigada pela atenção.
- É sempre minha colega que atende você. Você sempre pede água de coco com pão de queijo né?
-Isso.
- Então...quando eu soube de sua queda, eu fiquei com uma tristeza tão grande...como se fosse alguém bem próximo, mesmo sem conhecer você direito. Eu comecei a pedir a Deus conforto pra o seu coração e pra você ficar boa logo.
Sentimento de gratidão e impotência. Na verdade queria dizer que ela não precisava mais me enviar torpedos, que eu já sabia que ela estava pensando positivo para a minha recuperação. Mas eu não tinha esse direito de recusar seu carinho...e seu gesto me comoveu, apesar de minhas convicções. Então, hoje vou enviar um torpedo pra ela, tentando traduzir as cenas do vídeo, como um tudo novo de novo...

Aceitação?

Aceitação? E por quê? Existe outra opção? A aceitação parece com o silêncio incontornável e imposto. É o percurso mais reto quando não se pode mais lutar contra as forças da natureza? Há quem diga que aceitar é desistir, um ato covarde. Mas há quem diga que aceitar é conformar-se, ato de coragem para encarar a realidade. Para mim, aceitar não se define em uma tacada. Parece mais com um acordo temporário e necessário que motiva a acordar no outro dia e ficar em suspensão na corda bamba, experimentando o equilíbrio. Não passa de uma tentativa vã e sempre por um triz, de amenizar o sofrimento fingindo esquecer o ocorrido e calando aquele desejo antigo sem dele se desfazer. É um processo cruel e lento. É admitir limitações, suas próprias e a dos outros. Aprender a conviver com ambas sem se violentar nem agredir os mais próximos. Não me dirijo apenas para quem está na minha condição, mas também para quem lida com a perda da funcionalidade, principalmente sem fins financeiros. Esses que são nossas pernas, nossos braços e disponibilizam-se por não termos mais autonomia nem independência. Eles não têm obrigação de adivinhar o que queremos, como queremos e quando queremos. Se dizemos que nos tiram a privacidade, neste sentido é certo que damos o troco tirando o tempo que eles têm pra viver a própria vida. Então não é justo acusá-los de nada. Enquanto esbravejamos e "amaldiçoamos" o mundo, culpando o destino, o acaso, Deus, ou sei lá mais quem por algo perdido, essas pessoas estão provendo alimentação, documentos, agendando exames, consultas...empurram nossas cadeiras, nos levam nos braços, nos dão banho, nos vestem, aguentam nossas palavras ingratas, nossos gestos de desespero. Elas tentam nos confortar com palavras inocentes, muitas vezes sem fundamentos científicos, mas todas carregadas de esperança e bondade. E nessas horas, melhor evitar dizer palavras que você não pode mais retirar. Só lembrar de algumas que você já ouviu e que nunca se foram. Eu só sei que esses seres estão presentes, velam sua dor, em silêncio e não se importam em quanto você está diminuído.

A dança dos anônimos



Foi assim...

Foi assim...eu já havia ultrapassado o estágio do esboço de contração, vencido rolinhos embaixo dos joelhos e tornozelos, sentada no tablado, dorso contra encosto. Já havia deslocado theraband de todas as cores, deitada na cama do ginásio, tracionando músculos acionadores, estabilizadores e desaceleradores do movimento da marcha. Também já havia pedalado, ainda que minhas pernas estivessem amarradas dentro de botas instaladas nos pedais. Também já havia ficado em pé com os joelhos bloqueados na mesa mecânica, trabalhado equilíbrio de tronco, com e sem elevação de braços, ainda que este fosse meu ponto fraco até então. Sentia-me segura o suficiente para confiar na harmonia e compensação entre as cadeias musculares. De fato, faltava-me a coordenação de tudo em uma sequência. Então meu terapeuta funcional falou a frase mágica:

- Vá para as paralelas.

As barras paralelas representam uma espécie de "corredor da esperança"...um túnel de aproximadamente três metros para percorrer a pé e tem um espelho do final. Parece uma saída para esbarrar com quem a gente é. Cabe direitinho, sem mentir, a revelação "do que te agrada e o que te dói". É onde você dá a cara a tapa, tira a prova dos nove, faz o acerto de contas...Mas,  "é preciso estar tranquilo pra se olhar dentro do espelho, refletir, o que é... seja você quem for"...enfrentar-se é necessário, mas sem fingir e sem autossabotagem...teria chegado a hora? Estaria eu pronta?

- Sério?

Duvidei de mim. Ele fez sim com a cabeça. Toquei Toruk até a borda da entrada das barras. Travei suas rodas. Ele prendeu minha cintura em um cinto com alças largas, segurou-as firme na lateral, pôs-me de pé e não mais me soltou. Apoiei os braços nas barras, estabilizei o tronco...olhar fixo no chão a frente...medo...

"O medo é uma linha que separa o mundo

            O medo é uma casa aonde ninguém vai

                      O medo é como um laço que se aperta em nós

                                O medo é uma força que não me deixa andar"

Balbuciei suor e tontura...meu sangue aquecendo. Vapor ardendo. Os sons emudeceram-se em volta. Slow motion...sua voz me recomendava algo... eu entorpecida de emoção...

- Pernas semifletidas, tente sustentar o corpo o máximo sem os braços.

Ele checava a potência da força. Lancei-me..."por favor não me traiam, segurem-me...não me larguem logo agora"...apelo arrancado do fundo... muito tremor...inevitável... eu me inundava de vida e movimento...com a ajuda dele, avancei a passos curtos, lentos e valentes até a ponta e voltei. Toruk me acolheu no colo...nada falhou.  Respiração alterada...Gritei alto por dentro...por fora merecidas lágrimas sem pudor...silêncio longo...profundo... mistura de respeito e cumplicidade...

- Pode ir.

Voei dali com Toruk em um pranto bem esperado...minha alegria em segredo...

O contrário do alívio

Depois de duas semanas de lesão, ainda em Natal, recordei-me da rotina de antes: correria, falta de tempo, correção de provas, preparação de aulas, atendimento a alunos a cada passo no corredor da universidade. Intervalos, só nos deslocamentos de um lugar a outro. Adormeci em meio a tantas tarefas tão familiares abandonadas, disputando vaga entre os papéis imaginários sobre a cama. Acordei retorcida e sobressaltada, com a adrenalina queimando o espanto, temperatura explodindo!! "O despertador emperrou, estou atrasada para a aula!!". Antecipo-me com a intenção de retirar-me da cama sem hesitação. O empuxo não decola, minhas pernas desobedecem sem tração. O colchão me gruda e por alguns milésimos de segundos recorro a insistência confusa, atordoada de mover-me. Metade ainda dentro do sono, metade ali, enterrada dentro de um jarro, acenando as hastes e pedindo socorro. Minha testa contrai-se, os olhos apertam o entendimento se rendendo a uma espécie de contrário do alívio. Os lábios imprensados na explicação. Sensação de cair em si. Realidade me buscando de volta, me devolvendo ao colchão de onde sequer removi-me. Despeço-me do gosto nostálgico do sonho para despertar em um pesadelo.

A quoi bon?

A dança lenta dos biombos abraçando as camas intercalando as intervenções privadas. O baunilha do céu confunde trazendo ou levando o dia. Acordamos e adormecemos no meio de um oceano. São 26 sobreviventes de naufrágios diferentes se encontram na mesma ilha de Pandora, olhando o mesmo teto e calando a fala. Ouvimos os ruídos incessantes de tudo em volta. Os chamados se alternam a noite inteira. Meu corpo cansado padece em minha jangada a espera de um resgate. O dia encolhe a fronha, interpõe imagens de dentro e de fora do mundo. Desligo os olhos mais uma vez, tudo arde em volta. Olhares vagos distantes..."os nós que arrebentam, os fios que enlaçam, vontade entre alegria e dor". Antecipo a rotina...um centímetro a mais de flexão, um segundo a mais de resistência, alguns gramas a mais do deslocamento ou na densidade de sustentação. "À quoi bon?"... ("de que adianta"..."para que serve"). A quoi bon mexer minimamente os braços se não se consegue tocar a cadeira? A quoi bon mexer a mão se não se consegue segurar o garfo? A quoi bon segurar o garfo se não consigo fisgar a comida? A quoi bon fisgar a comida se não se consegue levá-la até a boca? A quoi bon mexer as pernas se não consigo andar? A quoi bon existir se não posso viver?

domingo, 17 de julho de 2011

Já dá pra calçar umas havaianas

- Tá sabendo do chá de cadeira que fizeram na ala B para comprar uma cadeira de rodas pra uma menina?

- Meu abacaxi não está cortado em rodelas, acho que se enganaram e mandaram em pedacinhos ("abacaxi de tetra"), quem precisa trocar comigo?

- O professor chegou no ginásio tirando onda ontem, dizendo que a aula de ballet estava marcada para as 10h. Tenho que comprar minha sapatilha!

- Aprendi a empinar sem cordinha, e só não consigo subir o degrau de 15cm.

- Vem que eu te dou uma rasteira!

- Aqui não pode pedir nada emprestado para não passar bactérias para o outro.

- Solta o braço, tá tocando a cadeira quem nem DJ!

- Lá no lago tem aula de dança, basket e canoagem. Mas parece que tem também desfile de moda.

- Pow...beterraba só pode ser bom pra medula... tem todo santo dia!

- Você está no grupo do passeio para o zoológico?

- Você viu que aqui dentro tem uma tela de cinema?

- A água da piscina é fria?

- Tá treinando fechadura com o adaptador de mão.

- Subir rampa é mais cansativo, mas descer é mais perigoso.

- Caraca, segunda-feira é o dia nacional da flatulência! Fala sério! O que vocês comem no final de semana!?

- Da barra com órtese para o andador, depois pra bengala e de lá para esteira. Tomara que eu consiga!

- Sonhei que todo mundo era "para" e eu era astro de novela.

- Tem diferença entre bengala e moleta?

- Muito ruim tomar banho sentado.

- Nunca mais tinha sentido dor muscular.

- Tive espasmo tão forte que caí da cama ontem.

- Pode ir se trocar seu short tá molhado. A sonda deve ter saído.

- O moleque não tem nem braço completo e nem perna. Ganha de todo mundo lá, faz tudo!

- Eu desmaio quando fico de pé na prancha mecânica.

- Deixei o rastro no chão, meu saco vasou.

- 62 dias deitado de bruços, dá medo de se sentar.

- Depois de meu acidente, todo mundo dizia que eu voltaria a andar e que Deus ia prover. Faz 11 anos já.

- Odeio quando os outros dizem que eu vou voltar a andar.

- Agora eu sei quem é mesmo meu amigo.

- Tô louco pra tomar uma coca cola.

- Logo que você se acidenta, todo mundo quer ver você pra conferir. Depois que você não é mais novidade, fica sozinho mesmo, brigando pra vestir a camisa.

E essa foi minha:

- Meus pés estão mexendo e agora já dá pra calçar umas havaianas!





Dialeto de Pandora

"PC": não tem nada a ver com computador, é paralisia cerebral;

"LM": não é produto para lavajato e sim, lesão medular;

"Vai fazer o "cat"?": não tem nada a ver com o gato. É simplesmente fazer cateterismo vesical: introduzir uma sonda na uretra para fazer escoar a urina. Pode ser assistido (com ajuda de alguém) ou autocateterismo (sozinho);

"Vai te catar?": não é procurar piolho em si, também não é "vá procurar sua turma". É também fazer o cateterismo vesical;

"Tá fazendo o catecismo?": Fazer cateterismo mais uma vez.

"Já tem seu kitcat?": não é ter um chocolate e sim um conjunto de saco coletor, sonda uretral, sabão neutro, lubrificante hidrossolúvel e gaze;

"Chegou no "paredão"? Em "Pandora" isto não significa que você vai ser fuzilado ou eliminado, mas sim, imaginar que sua alta se aproxima já que sua cama foi deslocada para perto da parede dos fundos se distanciando do posto de enfermagem (requerendo menor atenção);

"Carregando a bengala": Não é levar a bengala de alguém. Significa "andando tão bem que não precisa da bengala".

"Tá de preparo": tá fazendo dieta laxante de três dias para fazer uma ultra.

"Já sabe tocar a cadeira?": Quem não sabe tocar uma cadeira, não é? Mas isto significa conduzir uma cadeira de rodas. Vamos combinar: é bem melhor que "andar" de cadeira de rodas, né? Dannnnnn!

"Estar enfezada (o): não é estar com raiva, muito nervoso ou bravo ou coisa parecida...é estar "em fezada"...entende? Pense em fezes... Não queira que eu descreva mais que isso!

sábado, 16 de julho de 2011

Para quem aguentar "ouvir"...

De antemão alerto: o texto de hoje não se trata de um manual de instruções. Ninguém é obrigado a conhecer as entranhas do problema, mas se você veio me ler, algum interesse tem e por isso mesmo vai levar consigo o recado. Não vou me eximir em explicar, nem você vai se constranger em me "ouvir", ainda que o que eu tenha a dizer seja redundante ou não totalmente novidade. Não vou encorajar dizendo que o post de hoje é engraçado ou emocionante. Nada disso. Não vou enganar a você: ele é cru, porém, vital! Ele pretende desfazer uma série de equívocos que frustram, constrangem e desintegram a trajetória de quem precisa se reabilitar e de quem está acompanhando o processo. Se você é humano e vive em sociedade, isso concerne a você também! Portanto, sente e "ouça" os esclarecimentos sobre alguns equívocos que dizem por aí:

1. Pandora "não faz ninguém voltar a andar". Isso faz parte de uma lenda que a própria equipe que cuida dos Na'vis daqui faz questão de desfazer. Isto porque este reino foi concebido para tornar funcionais e valorizadas as capacidades que nos restam e a partir delas devolver dignidade, respeito e qualidade a uma vida adaptada. Obviamente o centro é composto de uma infraestrutura sem precedentes e um grupo de profissionais de excelente reputação... mas deixam bem claro desde a primeira consulta: reabilitar para as capacidades atuais sem mais expectativas. Por quê?

2. Eles defendem o propósito de que a recuperação da função medular depende da "espontaneidade" da própria medula em voltar a reagir. Portanto, quando acontece de um paciente retomar contrações voluntárias como é meu caso, eles atribuem o resultado ao despertar da própria medula e não ao trabalho de manuntenção osteomioarticular. Lógico que o trabalho para manter o organismo em atividade por meio do controle, higiene, exercícios físicos e demais cuidados é importante para dar condições de não perder a funcionalidade caso esse despertar aconteça.

3. Eles ou qualquer teoria sobre a neurologia entendem a medula como um mistério por ser uma extensão do cérebro. Ela é como um "caule" que parte do cérebro abrigada em um canal que passa dentro da coluna vertebral indo aproximadamente até o final da região torácica e início da lombar. Dela partem os nervos por onde levam e trazem mensagens enviadas do, e para o cérebro. Como exemplo, esses comandos atingem as funções motoras (mobilidade), sensitivas (sensações de tato, temperatura...), circulatórias (distribuição do sangue, nutrientes e oxigênio), vesicais (urina), intestinais (fezes) e sexuais (atividade sexual).

4. A lesão medular se caracteriza por um dano causado a medula, seja de forma traumática (acidente) ou não traumática (vírus ou tumores). Quando isto ocorre, há forçosamente uma interrupção na transmissão dos comandos cerebrais e partes do funcionamento de seu organismo abaixo da lesão podem estar comprometidas. O grau do comprometimento dessas funções vai depender não somente do nível da lesão (em que altura da medula se situa o dano) mas também da intensidade de sua extensão (comprometimento de todo o diâmetro da medula ou parte dele). "O quanto mudam essas funções depende de onde e do quanto a medula foi atingida". Isto pode ser de forma total (lesão completa) comprometendo qualquer movimento voluntário abaixo do nível da lesão; ou parcial (lesão incompleta) podendo prover movimentos voluntários ao longo da recuperação. Pode ocorrer lesão não somente por fraturas de vértebra, mas também perfuração, esmagamento ou choques/pancadas com formação de edema, como foi meu caso. As pessoas que sofrem lesões situadas na região cervical (pescoço) são classificadas como tetraplégicas, e da região torácica para baixo, paraplégicas. Os tetraplégicos em teoria são mais dependentes que os paraplégicos, mas como disse, a intensidade da lesão também determina a possibilidade das capacidades. Há tetraplégicos que ficam em pé, por exemplo, comem e fazem esportes adaptados, mesmo com outras limitações.

5. Da mesma forma não há regras para o comprometimento sexual. Alguns não são afetados e para outros é necessário a descoberta de novos estímulos para retomar essas funções. Portanto, pode ser um engano olhar os "plégicos" como se eles não sentissem prazer. Mas também isso pouco importa, sabe por quê? Porque na condição de para ou tetraplegia, a escala de valores da natureza humana se ajusta de uma maneira particular!  Perguntem a um deles se pudessem escolher, o que seria prioritário, assegurar a função sexual como antes ou a função vesical ou intestinal? É praticamente unânime a resposta!! Independentemente do nível de "garanhonismo" do passado, a função sexual ou até a marcha ficaria em segundo plano. Afinal passar a vida toda introduzindo uma sonda na uretra a cada 4 ou 6 horas para escoar a urina (cateterismo vesical), ou transitar com sonda e saco coletor (sonda de demora), ou ainda fazer manobras para eliminações fecais, requer uma aceitação imposta e uma organização extrema. E isso não é nada confortável, sem falar no risco de vazamentos. É meu caro, é sem escolha. Bexiga e intestino cheios e distendidos podem levar a problemas sérios como a insuficiência renal ou impactação fecal. São casos de emergência médica.

6. Ainda não terminei: o lesado medular também corre o risco de abrir úlceras por pressão dos ossos na pele (escaras). Isto acontece porque o desuso do aparelho locomotor acarreta perda de massa muscular expondo mais os ossos ao contato prolongado com a superfície que nos sustenta, quando mantemos o corpo na mesma posição. Além disso, em algumas lesões há risco de aparecimento de movimentos involuntários de membros (espasmos) que podem causar quedas entre outras consequências. Portanto quando virem os "plégicos" moverem partes do corpo que são inertes, não pensem que é algum espírito habitando um corpo, um encosto, um milagre ou fingimento.  Para isso é necessário medicação para diminuir os espasmos. Além desse tipo de tratamento, existe a aplicação de botox para relaxamento dos nervos. Já para evitar trombose (provocada por problemas circulatórios), tomamos injeção diária ou usamos meias, digamos, especiais. Temos ainda uma alimentação naturalmente laxante, bebemos muita água, utilizamos manobras para facilitar o movimento intestinal ou outros estimuladores, e ainda fazemos exercícios físicos e cuidamos da hidratação da pele com cremes.

Entendeu por que os heróis sem medalhas merecem mais respeito e prioridade?

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Quantos dedos então faltam?

Já tá perto? Vai demorar muito? Quando eu vou crescer? Com o "tempo" as perguntas mudam, mas ainda assim ele permanece pano de fundo. Como se mede tudo isso? Pela intensidade do que se vive? Em segundos, dias, anos? E quantos segundos duram um segundo? Você sabe?
Não, não...eu não me enganei nem você leu errado. É isso mesmo. O encontro pode ser curto e ainda assim eterno. E pode ser longo e completamente inexpressivo. De abril pra cá foram 3 meses de intensa busca, lenta espera, dúvidas, confrontos, estimativas, julgamentos e transformações.

O nunca e o sempre têm a mesma duração ainda que em direções contrárias. Será que vale a pena conhecê-los? Como diria uma voz amiga: "nada é tão longo que (não) seja definitivo ou imutável. Esse funil à conta-gotas que não preenche, e que tortura. Maltrata porque nele a expectativa frustra, ainda que a esperança branda amenize.

Remando sobre rodas sem bússola e sem endereço de destino. Aliás, que destino? Como aquele soldado do livro do Buzzati que parte à deriva com expectativas para ser lotado em um antigo forte somente com o dever de velar o deserto. O tempo conta diferente para quem é livre? O que diria um "presidiário cumprindo sentença"? Um refugiado encarando o exílio? Um refém enfrentando um sequestro? O tempo parece ser aquilo que a liberdade sequer vê passar. Ignora qualquer esperança com desdém, petulância e autossuficiência.

Para saber o que é o tempo, seria necessário ler o diário de um faroleiro do atol, ouvir com profundidade seu interesse pelo cotidiano, sentir o tédio murmurar relíquias, aprender a reter do sussurro do ócio, os detalhes que não se visualiza. O tempo atrasa a covardia e adianta os impulsos...ele paira levando de volta ou trazendo pra longe..."tem volta e te cobra... o fim é uma forma de recomeçar". Ele fere, dissolve e aborta. Só não para e não cura. Definitivamente, não se iluda, ele não cura...conheço muitos "viventes bem vividos" ainda bem enfermos.

Porém, o tempo prescreve, e por isso alivia...se despede de mim e de você sem avisar, amargando remorsos pelos deslizes e desfalques ou rendendo leveza pela consciência e imunidade. Ele desprende, decola e retoma "marcando o passo" em sua arritmia. Lembro que quando pequeno, meu irmão caçula me perguntou quantos dedos das mãos ele deveria "dormir" até que eu voltasse de onde morava. Demorei tanto no retorno que ele preferiu dar meu nome a uma plantinha que ele regava todos os dias esperando minha volta incerta. Não sei dizer quantos dedos contariam seu sono, nem saberia descrever o vigor daquela plantinha crescendo sob sua vigilância. Eu só sei que o tempo dedicado a mim, me fez permanecer viva dentro dele ainda que distante. Quantos dedos então faltam para fechar esse parêntese?




terça-feira, 12 de julho de 2011

As imagens falam por mim


A semana promete!! Energia, vontade e ânsia!! O dia desliga cedo, cansaço bom. A rotina viva, girando sem dono, ponteiro a fora. Mundo por favor não pare, não quero descer. Estremeço na força, concentro na precisão. Sem mais palavras...as imagens falam por mim.

Arquibancada chegando!

Exame ok. Escapei da faca! Bom? Espero que sim, pois o canal medular foi invadido apesar da medula permanecer intacta.

- "Evitar esportes de contato ou impacto". ("Como assim? Ah...entendi...só tênis de mesa, snooker, pôquer e xadrez, né? E definitivamente tenho que largar meu boxe!!! O que aliás não deve ser muito difícil já que eu nunca lutei...").

- O Tartaruga já teve alta, mas ele estava aqui ("Tartaruga? Esse cara só pode tocar a cadeira muito lentamente pra ter esse apelido).

- Por que Tartaruga? – não resisti!

- Então, neguinho não se ferra com história de mergulho em águas rasas, né? – disse meu interlocutor.

- Sim, é até a segunda causa de lesão medular...mas e daí? – disse eu demonstrando todo meu conhecimento na “área”.

- Daí, o dele foi em águas profundas, mas aí passou uma tartaruga bem na hora e ele tascou a cabeça no casco dela. Resultado: lesão alta, tetra!

- Sério!!!!? ("Não acredito nisssssssssssssso!! Caraca, não é possível!!!!").

- Pior é que é verdade! – disse ele com um certo ar de quem pensa "Pois é, quem consegue prevenir uma coisa dessas!!?

- Muito azar...minha nossa! – disse eu sem “realizar” o fato!

- Pior foi o cara da manga – completou em seguida. ("Humrum...peraí, cara da manga? Como assim!!!? Engoliu o caroço? Teve falta de ar seguida de parada respiratória que acarretou paralisia cerebral e comprometeu a medula!!?")

- O que tem ele? – não resisti novamente!

- Diz que uma manga caiu na cabeça dele. Resultaaaaaaaaado: Lesão alta, tetra!

- Não, aí você tá brincando né? ("Surreal! Só pode ter sido uma manga rosa!!! Uma manguita jamais seria tão maligna!!!!").

- Tô nada, é sério! Parece mentira, mas não é... (Pensei "E eu então o que sou? No mínimo devo ser "Arquibancada!!!”, né? Tipo: olha quem vem ali, arquibancada chegando!").

domingo, 10 de julho de 2011

O ruim que pode piorar ou a esperança que morre por último?

- Seus sinais clínicos indicam uma lesão na T7 mesmo que o choque medular tenha sido na T11. Tivemos um outro achado na ressonância que pode acarretar um procedimento cirúrgico na coluna cervical: você tem um estreitamento do canal medular na região cervical.
- Mas a lesão não foi na coluna torácica?
- Sim. Acreditamos que o primeiro impacto foi o mais forte localizado na região torácica. Porém, houve um segundo choque, de sua cabeça contra o corrimão. Este provocou desmaio e no retorno a consciência, você tinha perdido a sensibilidade e os movimentos dos membros superiores, não foi isso?
- Sim.
- Então, apesar de você ter recobrado essas funções em poucos dias, acredita-se que tenha havido um impacto por deslizamento de vértebras ou um agravamento de suas hérnias no momento do choque. Elas estão bem próximas da medula e isto pode provocar uma lesão. Precisamos realizar um exame para estimar a necessidade de realizar uma cirurgia nos próximos dias.
- Mas esse estreitamento foi causado pelo impacto?
- O estreitamento não, é de sua constituição. Existem alguns casos na população geral e você está inserida nesse grupo de exceção. 
- É...mas eu não sinto formigamento e recobrei as forças. Meu médico em Natal já havia falado sobre a necessidade de fazer essa cirurgia futuramente.
- Pois é, mas nós vamos investigar a necessidade da urgência dessa intervenção como medida de uma cirurgia preventiva por meio de um exame na eletromiografia, o Potencial evocado motor.
- É o resultado dele que decide?
- Exato.
- É realmente necessário?
- Sim. Negligenciar essa possibilidade de lesão seria se expor ao risco de uma tetraparesia que levaria o comprometimento sensitivo/motor de membros superiores ao invés de somente os inferiores como na paraplegia atual.
- Sei...traduzindo, levaria a tetraplegia.
- Pode-se dizer que sim, ou a um estado semelhante.
- E essa cirurgia não melhoraria em nada meu quadro atual, né?
- Não, não é esse o objetivo e sim o de prevenir o risco de outra lesão mais incisiva na região cervical.
- Sei... 
- Alguma dúvida?
- Sim, quais são os riscos?
- Riscos de qualquer cirurgia, porém trata-se de um procedimento preventivo e teoricamente sem complicações agravantes, já que não se trata de fraturas com fragmentos ósseos ou edema.
- Se o resultado afastar a possibilidade da realização da cirurgia, qual será minha previsão de alta?
- Sua alta está programada para o dia 2/08 caso não haja cirurgia. E também vai depender de sua evolução aqui. Pode ser que seja antecipada ou prolongada. É uma decisão para ser tomada em equipe. Ainda é cedo para prever a alta, visto que não descartamos ainda a realização da cirurgia.
- Tá...tá bom...
- Se surgir alguma dúvida não hesite em nos procurar, estaremos a disposição.
- Tudo bem...obrigada.
Eles se afastaram...eu toquei a cadeira pra longe...tentando filtrar as informações. Dois colegas passaram:
- Tô sabendo que você mexeu o pé, né? O que eles falaram com você?
Respondi pra eles em resumo sobre a novidade bem desanimada. Um deles rebateu:
- É companheira...não há nada de ruim que não possa piorar. Mas não é nada certo. Aliás, na vida só há duas certezas: a morte e o show do Roberto Carlos no final do ano. E que nossas sogras nunca se chamem esperança, porque ela é a última que morre.
Tive que rir...aqui a realidade é árdua...mas sua crueldade é partilhada...cumplicidade de sofrimentos.

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Um dia de cada vez

Não...não amarro mais o cadaço dos tênis...não tenho mais medo de tropeçar nem pisar meu pé na terra..."o chão sumiu a cada passo que eu dei"...tudo passa rápido...muito rápido...uma fração que escapa...o teto me cobre com sua viga fria, contorna meu entorno...me deixa rente...mirando a distância pra tocar o topo do apoio...alcanço o mundo pela janela... aquela do favo de mel...daqui a vida cabe nessa moldura...tanto movimento enchendo os olhos...minha vida sem mim......penso na lentidão dos ponteiros que contam a intensidade da paciência...tudo me oscila incansavelmente...o norte perdido...não sei mais em que tempo me conjugar...quem sou ou era...nem como serei...vontade de tocar "Toruk" pelo mundo a fora, pela madrugada adentro...ir no seu colo avante...fazer tudo que nunca fiz e que já envelheceu...vontade de me despedir de mim antes e ser bem vinda hoje...hoje definitivamente não arranharia o disco...mas ficaria o tempo necessário para ver o sol adormecer em mim. Um dia de cada vez...

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Antes de dormir, treinamento do progresso?


Não dá nem pra calçar umas havaianas...mas....



Parte da rotina

Enfim...internet liberada... regras fixas... horários para visitas e telefones...  encontro-me em uma ala sem queixas nem dores...tudo já consumado, readaptado sem mais lamentações. A vida rodando feito um carrossel... enfeitada de truques, de toques mágicos, de manobras ilusionistas pra tocar o barco porque o mar é vasto. Programa diário adequado, rotina impressa no relógio biológico...movimentos automatizados, habilidades adquiridas, protocolos padronizados. Sim...somos equilibristas armados de vontade e esperança tolhida... latente. vítimas de um acaso afiado e pontual. Sabe aquele absurdo fatal, revestido da "falta de sorte"...aquele acidente trágico contado sobre um desconhecido qualquer? Que até nos chocamos, lamentamos e ficamos impressionados...mas aí o assunto seguinte logo apaga a sensação de mal estar desligando as imagens nefastas, nos assegurando que aquilo está distante e não nos atingiu? Pois é...acontece que eu faço parte desses "desconhecidos" e estou rodeada deles aqui. Algo foi o nosso divisor de águas e mudou o curso do rio...os mais independentes recuperaram a autonomia mas ainda devem se curvar a adaptações vesicais constantes...os mais inertes dependem permanentemente da estima tão sincera e dedicada de seus cuidadores...pessoas do bem que amam...devoção gratuita...e se for mesmo por amor e não por culpa, pena ou obrigação....é uma doação que me comove todos os dias.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Minha melhor versão: só cinéfilos entenderão!

Nunca tive super herói preferido... lembro que eu amava os braceletes da mulher maravilha, a audição da mulher biônica e o nado do homem do fundo do mar. Mas na minha imaginação me vesti na pele de muitos deles...já imobilizei bandidos, escolhi a cor exata para cortar o fio da bomba, desarmei minas, manobrei duas ou quatros rodas a toda velocidade, conduzi hélices ao redor do mundo, arqueei asas para chegar a tempo e evitar acidentes...já lutei contra dragões, cowboys e robôs...sangue, suor e lágrimas...corri no escuro mais que o Forrest Gump, escalei montanhas, nadei em correntezas...é... já fiz tudo isso me imaginando salvar o mundo como a Amélie Poulain em seu Fabuloso destino...Hoje estou eu aqui...vestida de Na'vi domando "Toruk" (minha cadeira de rodas)... com minha bioluminescence armada de tinta para refazer as arestas, afiando o punho para reescrever histórias em meu avatar...abro meu "álbum de recortes"...uma espécie de memória em imagens que se eternizaram...o que eu faria diferente? Deu vontade mesmo de recolorir "A lista de Schindler"... fazer o Toto quebrar o combinado com o Alfredo e reatar os laços visitando Giancaldo de vez em quando em "Cinema Paradiso". Eu refaria uma nova versão da máquina de apagar memórias para ter um "Brilho eterno de uma mente sem lembranças"...mas suprimiria somente as lembranças ruins. Eu gritaria palavras de amor na chuva do alto do entulho de ferro para ecoar no abismo da "Hora de voltar". Eu teria salvado Christopher do abrigo daquele ônibus em "Natureza selvagem"...ele teria voltado a tempo, antes daquela inundação. Eu teria comido todos os dias aquela torta que ninguém queria em "My blueberry nights", sem precisar esquecer para sempre as chaves de casa com o barman. Eu não teria deixado Hansard partir sem saber a tradução da resposta da Irglová em eslocavo (MILUJU TEBE) para a pergunta "você o ama?" era exatamente "eu amo você" em "Apenas uma vez". Eu entregaria em mãos aquela carta jamais lida "No amor e na guerra" para descobrir como tudo teria sido se ela tivesse chegado a seu destino. Eu teria insistido para o Esposito não privar "O segredo de seus olhos" e confessar seu amor a Irene naquela despedida. E "Quem quer ser um milionário" pagando cada resposta com um sofrimento vivido? Eu teria promovido o encontro no pós-guerra naquele campo de capturados entre aquele militar alemão e Wladyslaw, "O pianista" polaco salvo pelo encantamento de sua música, por que não? Eu teria provocado o reencontro do Daigo Kobayashi e seu pai antes de seu acondicionamento na "A Partida"... eu encontraria um exoesqueleto ou a solução das células tronco para o Bauby sair de seu "O escafandro e a borboleta". Eu teria retirado aquele obstáculo no meio do mergulho do Ramón Sampedro de "Mar adentro" e aquele banco vermelho que aparou a queda da "Menina de ouro" no ringue...eu teria refeito algo para ter um outro fim, um outro gosto, uma dor mais amena...talvez mais justo ou inusitado...ou pelo menos mais feliz... mas talvez, alterar o trajeto da vida, transformaria a mágica de todas essas histórias...e perderia o sentido. E eu, em minha versão... será que valeria ter modificado?

O significado da espera

Teto de concreto, vigas delineadas. Eu, acomodada em minha forma, alojada em uma caixa de abelhas com janelinhas de favo de mel. Telefones soam, murmurinho de vozes, rodas dos carrinhos dos lençóis, passos sapateiam desfilando os descartes, bandejas removidas com os restos, alavancas rocam rebaixando as camas, cadeiras rugem suas rodas orquestrando a sinfonia da enfermaria. Lá fora os letreiros acordam nos prédios anunciando precocemente a escuridão. A quietude me abranda, a música apaga em mim desligando os olhos. Acendem-se cenas na minha tela interior.

Penso na história da espera do soldado pela princesa que o Alfredo contou para o Toto em Cinema Paradiso...

Alfredo: Era uma vez, um soldado que se apaixonava pela bela filha do Rei e que lhe confessa não poder viver sem ela. Mas como o soldado teria chance de casar-se com a filha do Rei? Como prova desse sentimento, ela pede para ele esperar 100 dias e 100 noites embaixo da sacada de sua janela. Com chuva, vento, neve, surrado por pássaros e abelhas, ele estava lá, sem se mover, a esperar, “passoapassodiadia”, sob o olhar vigilante da princesa. Depois de 90 dias, ele estava todo ressecado, rachado das intempéries, sem forças e ela, a espreita, a olhá-lo. No 99º dia, ele se levantou e partiu ...

Toto: Mas por quê? Ele estava tão perto?

Alfredo: não me pergunte o significado, eu não sei.

Lembrei do primeiro livro de verdade que li na vida: “O menino do dedo verde” do Maurice Druon. Nesse livro havia uma frase que dizia: “é sempre perigoso zangar-se com aquilo que não se compreende”. Eu não entendia essa frase. Eu li esse livro quando eu tinha 6 anos. Perguntei a minha mãe o que aquilo queria dizer. Ela disse que quando eu fosse mais velha, entenderia. Lembro de ter ficado bem chateada, porque se não era um livro para eu entender naquele momento, ela não poderia ter me dado de presente. Decorei a frase só de vingança e de vez em quando eu checava se eu já era mais velha o suficiente para entender. Sem querer, aquilo começou a ser um marco referencial de maturidade. Mas o tempo passou e eu fui me desligando dessa missão.

Mais tarde, já adulta quando morava em Brasília, um vendaval desses da vida estava acontecendo e me aconselharam contratar um cara para fazer meu mapa astral. No dia em que ele foi me apresentar o resultado, eu queria anotar tudo e ele disse:

- Não se preocupe em anotar. Você só vai reter o que fizer sentido para você agora e o que fizer sentido agora você nem vai precisar anotar porque vai entender de imediato. Se você precisar anotar o que não entender, a própria falta de sentido vai descartar de sua memória. Vai chegar um momento em que as peças vão se encaixar e sua interpretação dos fatos vai ganhar plenitude.

Nesse momento, eu tive a impressão de ter um déjà vu. Era a história do livro “O menino do dedo verde”. A frase veio imediatamente à memória e eu a entendi perfeitamente. Saí rindo.

Na história do soldado contada pelo Alfredo, ainda não chegou o tempo de minha maturidade para entendê-la e não sei por que tenho lembrado dela por esses dias. Talvez porque tudo toma forma em um momento e se desfaz no seguinte. Talvez por haver um frágil contorno na linha tênue da vida, e nesse processo somente as incertezas são tão seguras. Reflito sobre o mistério que a demora constrói dentro da gente. Tantos desistindo porque o fim talvez perca o sentido.