segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Tire a mão da barra

Retomando em restrospectiva

"Tire a mão da barra"...um start me autorizando a ir em frente sem medo...apostar no equilíbrio certeiro, no passo firme, determinação para tocar em frente, sem dúvida. Entender o silêncio, o gosto da lágrima, a espera. Querer o incerto, reavivar a alma sem perder o prumo, sem ceder a tarde. Em um segundo minha vida muda, desaba...eu era de um jeito e fiquei sem ele. A lucidez é ácida... "Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço"...extrato de um filme e esse é inédito... e sem encarte nem sinopse...as imagens vão nascendo com um segundo de antecedência...coração me enchendo por dentro...os momentos precedentes ainda ecoavam na minha mente...assim entrei na sala. Eles eram 12 e entre eles meu médico. Atravessei a sala em linha reta.

- Onde você mora? – Indagou o médico-chef, imagino eu.

- Em Natal.

- No aeroporto de lá, a saída do avião se faz por finger ou no pátio?

- Finger...

- Ah...assim não tem graça... – Ele riu em seguida e eu também!

Creio que recebi alta. Depois de uma hora de conversa, saí. Os corredores pareciam sem fim. Eu com pressa de viver. Choro e riso. Vontade de decolar. Recebi muitas restrições, obviamente. Mas todas elas me devolviam a vida, sem mesquinharias. Muitas perguntas me foram feitas e as respondi como se as respostas já estivessem prontas desde o começo de minha vida ou em seu recomeço.

- "Vocês sabem tudo sobre lesão medular, têm uma experiência indiscutível e incontestável.  É importante fazer um dia de treinamento na pele de um paciente LM, vivenciando sua vida. Isso dá certamente a ideia do nível de dificuldade que passamos na rotina. Mas ainda assim, não conhecem a condição de uma pessoa com lesão medular".

- Você deveria abrir um blog. – disse uma médica. Mal sabia ela que isso aqui já me contava.

- Sua recuperação foi inacreditável. Como você vai dizer para as pessoas?

- Eu tenho que dizer primeiro para mim...Renasci dos escombros, bem mais forte e voraz.

"Não perca sua segunda chance, você caiu pra cima!”.

Não vou desperdiçá-la. Pode deixar. Meu caminho tem outro Norte e vou trazer sempre comigo o que me modificou. Não me esqueço do que me machucou, mas não vivo disso. Vivo do que me dá verdade e sentido. Não vou perder de vista cada centímetro que me arrastou, cada segundo que me construiu, cada gota de suor e respeito a dor. A solidão é mesmo calada. Vou voltar para casa...diferente...não ilesa...não imune...uma alegria constrangida...feito um soldado que volta de uma guerra, deixando seus companheiros no terreno de batalha, na luta, já cheios de marcas e limitações. Estarei entre dois mundos, confrontando desejo e realidade. O que farei de quem me transformei? O que eu faço de quem me tornei? Não sei...eu só sei que "me vejo o tempo todo começar de novo"...e sou e tenho tudo pela frente...O começo do recomeço ...e...tirei a mão da barra.






terça-feira, 16 de agosto de 2011

Não perca mais seu norte!

Quando eu era pequena, insisti para minha mãe comprar uma bússola. Minha grande descoberta em um desenho animado do professor Pardal. Achei a engenhoca fantástica. Na minha cabeça essa invenção impediria que eu nunca mais me perdesse dela. Bom, obviamente ela não se animou em comprar um equipamento tão sofisticado para uma menina de 5 anos, mas em contrapartida me confortou dizendo que a bússola era como um coração, que quando me sentisse perdida, conversasse com ele para me guiar. Mais tarde entendi que tinha sido uma tentativa poética de minha mãe querendo se livrar das minhas solicitações sem lógica ou então, uma sementinha plantada para reflexão futura...ou talvez, ela se orientasse dessa maneira. Não sei dizer, até porque abandonei essa ideia de ter uma bússola ou de substituí-la por algo que já morava no peito e que de fato, eu não poderia manipular. Tinha esquecido de tudo isso que veio à tona somente dois anos após a morte de minha mãe, justo no dia de me mudar para o Brasil em decisão "definitiva-temporária", depois de 13 anos longe do ninho. Não sei por que, lembrei dessa história de infância. Provavelmente por causa das dúvidas, incertezas, do desconhecido, das escolhas inevitáveis, das bifurcações que a nova vida poderia me trazer...  eu contei essa história sentada em um café para o amigo que iria me acompanhar na viagem de volta. Ele me perguntou: "você já teve uma bússola"? Eu ri...porque era muito em sentido figurado. Mas respondi "queria uma, mas que fosse para pendurar como um pingente. Teria que ser minúscula, pois é só para ser simbólica". Assim peregrinamos em muitas lojas de navegadores e nas esportivas, até acharmos um chaveirinho contendo termômetro e bússola. Extraímos a relíquia cuidadosamente quebrando o bloco de plástico em volta e voamos para o Rio de Janeiro na mesma noite. Dia seguinte, nos despencamos para um bairro nos arredores do centro. Ele parecia tão empolgado com a minha causa quanto eu. Invadimos uma rua entranhada de cubículos, salas minúsculas, apertadas e entulhadas de miçangas, paetês, lantejoulas, strass. Era o verdadeiro mercado de fragmentos para montagem de fantasias, um amontoado gigantesco de espeluncas. Procuramos de porta em porta por algumas horas alguém que topasse confeccionar minha "joia rara". Todos muito atarefados, mal me ouviam. Só me recomendavam sempre outro lugar, outra pessoa, até que contei minha história para um artesão. Era de meia idade, robusto, avermelhado com pelos saindo do nariz. O cenário de fundo repleto de restos de tudo, partículas minúsculas de brilhos empoeirados... teto carregado de vidrilhos de todas as cores, chão surrado, paredes encardidas, pouca luz. Um cenário inesquecível de filme: uma sala dentro da outra que era dentro da outra...um labirinto, caverna, túnel e nos fundos uma oficina. Ele tomou a bússola entre as mãos, com unhas escurecidas, braços manchados, coberto de suor. Puxou os óculos para a ponta do nariz. Examinou por todos os ângulos minha "herança". Apoiou os braços no ventre e disse olhando por cima dos óculos: "entre aqui, acho que dá pra fazer algo". Pegou uma moeda holandesa, acertou nela a dimensão da base da bússola. Muniu-se de alicate e martelo e manipulando-os criou o encaixe. Testou uma cola, depois ferramenta e cola novamente. O suor não tardou a escorrer pela testa. Assentou outro tipo de cola e nos olhou: "voltem depois, vai demorar". Assim fomos e voltamos uma hora mais tarde, já em volta do pescoço com o cordão predestinado a preciosidade. Percurso do combatente, um périplo. Ele me mostrou enfim a maravilha. Estava perfeita! Simples e significativa. Eu disse "não sei nem como agradecer. Pode dizer quanto, pagarei o que quiser, isso é muito importante pra mim". E ele me respondeu: "Não foi nada, eu é que agradeço a você por ter me deixado participar dessa história tão linda...não perca mais seu Norte, seja feliz".

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Eu, esperando por mim



Retomando em retrospectiva

Desci, era cedo. O ascensorista me sorriu. O som do elevador cantarolava uma canção antiga, melancólica..."silêncio e sons". O dia parecia não ter acordado. Revi meu programa da jornada...preenchido...TF, musculação e psicologia.

- Bom dia. Hoje às 14h a equipe quer ver você. Vão discutir dois casos e um deles é o seu. Mas chegue na hora. – disse meu terapeuta funcional).

-É, já sei, vou sim. É no laboratório de movimento, não é?

- Isso. Mas vamos ver se hoje você já vai sem a bengala.

- Andar assim sem a bengala? Mas tenho que treinar porque nunca fiz isso...

- Você tá carregando a bengala já. Vamos ver, hoje você caminha entre as barras.

Meu corpo tremeu inteiro. Tive a impressão de ficar tonta. Deu um zumbido no ouvido. Suei frio. Parecia que a cor sumia em dégradée, vindo da cabeça até os pés. Tudo ficou lento e os sons se apagaram. Pensei que era o teste final, o começo do fim, o antes do recomeço. Era como qualquer coisa que me largava em uma estrada estranhamente familiar, no meio do filme, sem paraquedas... o frio na barriga, chaud au coeur (coração aquecido), plexo solar assanhado como um rastro crescente e redondo deixado por uma pedra lançada no meio do lago. Algo em mim "movendo a água abandonada"... o chão parecia um abismo de tão distante de mim. O cérebro descoordenado, balbuciando os ajustes. Estou descrevendo a sensação porque poucas pessoas vão saber o que significa perder e recobrar. Então, leia...

Olhei do alto para meus pés, sem me curvar. Os olhos esticaram para medir o espaço. A bengala grudada na mão...meu sensor, meu guia, meu apoio...a hora da despedida, a volta a autonomia. Talvez ela me dissesse "a estrada é sua, não precisa mais que eu dite os buracos pelo mundo a fora"...memórias retalhadas de emoção. Em frente, o espelho...e nele alguém familiar...eu, ali, refletida, em pé, esperando por mim.

Sobreviver no desafio

Retomando em retrospectiva

Ok...nem dá para esconder de que estou me esquivando...evito falar sobre minha condição sobre o "andamento" de minha vida. Estou progredindo, mas há uma rediscussão sobre a possibilidade de minha cirurgia na cervical...é, novamente. A equipe médica vai se reunir e estarei convocada para participar e ouvir o anúncio final da decisão. Estou fazendo também um diário miccional que é uma espécie de registro da quantidade de urina expelida. Em seguida, a enfermeira passa um aparelhinho para observar o comportamento da bexiga. Esse procedimento é necessário para avaliar minha função vesical e saber se estou apresentando urina residual. Também vou repetir um exame: potencial evocado motor para membro superior para identificar algum eventual comprometimento já que a ressonância apresenta uma compressão medular. Eles precisam desses dados para visualizar o estado geral e avaliar com maior profundidade a necessidade de intervir de forma cirúrgica. Não consigo dormir por causa da ansiedade da resposta. Ansiedade por medo de escapar os ganhos motores durante o sono. Como se o estado de vigília fosse capaz de me manter em movimento e prolongar a realidade atual. Em volta, meus amigos recentes estão aprendendo autonomia, ajustando algumas disfunções, tocando a vida, mesmo com avanços motores estagnados. Eu estou preste a deixá-los em seus avatars ou a me eternizar na recuperação de uma eventual cirurgia. O tempo martela no coração arrebatado. Grito preso de angústia e de alegria. Em um flash me vejo ganhando o mundo, vivendo os planos e em outro, me imagino deitada, imóvel, sedada esperando minhas vértebras se reintegrarem. Resta aguardar a decisão da equipe médica.

Enquanto isso vou revendo meu percurso: desde os tubos da UTI...paraplegia traumática, movimentos distais discretos e débeis escapados de uma tetraplegia que ainda me ameaça potencialmente, esboço de contração no quadríceps no meio de um alongamento, força gradativa, theraband, andador, duas moletas, uma moleta, bengala...três meses...ainda não acredito...mal consigo concretizar essas imagens na minha cabeça, esses movimentos...você não tem a menor noção...é indescritível... Não devo mais temer nada... a vida segue, não importa o que houver. Não sinto saudades de mim, sinto falta de viver de outra maneira...de realizar as vontades que desfalquei, de desenterrar as ideias, de resgatar os rascunhos da lixeira, de queimar o manual de instrução, de virar a página, apagar as manchas, de traçar e de seguir. Se eu "sobreviver", tenho um mundo pela frente. Tenho chances porque "mudei pra sempre". Aprendi a distinguir cuidado e medo, esperança e expectativa, diferença e desigualdade...o valor justo de cada coisa, a voz do silêncio, o tamanho do passo, a fragilidade da vida, a representação da presença...e não duvido do desafio porque ele me cabe e me constrói...

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Einstein, Dalí, Gandhi e Arafat no elevador quebrado do "teatro do absurdo"!


Retomando em retrospectiva


"Se a vida for binária, a Origem vai me dar uma explicação sobre Matrix". Acordei lembrando dessa frase dita por um garoto de 17 anos na entrada do hospital. "Esse guri não diz coisa com coisa", comentou alguém a respeito. Ficção científica não é o meu forte...mas aqui experimentamos todos os dias a magnitude de uma ficção científica esperando que a mesma se torne real um dia (afinal, estou no meu avatar, não esqueçam!). Na minha opinião, foi quase um trocadilho de sentido cinematográfico, meio futurístico e com humor ou pelo menos perspicaz apesar de ainda nebuloso para meu espírito "lógico". E no mais, "é sempre perigoso zangar-se com aquilo que não se compreende", como anunciou Druon com seu dedo verde. O compreensível me conforta mas seu contrário me intriga e me deixa em dia com a fome de buscar, de viver...é como uma inquietude que vem do enroscado de fios que a vida tece com pressa. Estou consumindo os dias, devorando meus últimos grãos da ampulheta por aqui...então você há de convir que eu não poderia deixar de saborear as entrelinhas deste epílogo...essas sensações de guerra interna contra os elementos do ilógico...veja...vivo em um universo social...e não havia percebido antes que o mundo visto pela janela, pela tela da televisão me parece bem estranho, bizarro...deve ter sido esse sentimento que os astronautas vislumbraram olhando a terra do espaço depois de tantos dias sem convívio...como um ponto ao avesso, na contra-mão da rotatória, carrossel rodopiando no tornado, tempestade de traçados sem norte, vácuo entorpecido pela ansiedade...um verdadeiro "teatro do absurdo" que bem poderia transformar-se no "teatro mágico"... mas creio não ter habilidade para tratar a realidade de forma tão inusitada e poética, apesar de minha indignação  latente ...ela me é também cruamente e cruelmente sóbria....me remete às entranhas, às eras longínquas de minha existência... traz-me Sra. Lussigny, uma professora de fonética que cruzou meu caminho...tentando me explicar a inspiração do relógio fundido do Salvador Dalí a partir da visão de um camambert derretido... "ele relacionou sua arte com a concepção do tempo segundo Albert Einstein:"o tempo é relativo e não fixo"", dizia ela...lembro ter passado meses para entender isso...esperei tanto minha inteligência latejar uma faísca sequer de manifestação..."Gente, o Dalí derreteu o relógio por causa de um queijo pensando no tempo do Einstein!". Parecia que estava tão ali, as claras! Mas e daí né? A intriga se renova e agora curto as incognitas da Origem cogitada a destrinchar Matrix...o mais interessante nem é a descoberta em si ou a resposta, mas o que a busca por elas faz em você...então qual é a trama? Entender a ausência de lógica no óbvio! É, o absurdo é assim mesmo, contrário a razão. Estou mesmo vivendo cenas surreais...e nem peço que me entendam...mas imploro que atentem para, sobre e a respeito... da autosabotagem praticada por quem tem medo de dar certo na vida...e da omissão exercida por quem é incapaz de importar-se com o que não o atinge diretamente...quer ver? Alguém aqui atentou para o Nobel da paz que o Mahatma Gandhi nunca ganhou e em contrapartida o Yasser Arafat imprimiu um em seu currículo!?? Um pacificador sem qualquer ato de violência e um líder terrorista..."O mundo está ao contrário e ninguém reparou"? Absurdo, não? Mas vocês podem contra-argumentar dizendo que a Índia e a Palestina ficam bem longe daqui...quem se importa se tudo parece muito "surreal"? Certo...deixemos então nossos convidados em paz...vamos lavar a nossa roupa suja ...alguém sabia que dos três elevadores do aeroporto Augusto Severo em Natal (sim, apenas três, o que já é um absurdo!), apenas um está funcionando (outro absurdo!) e isso há dois anos (absurdo master!)? Alguém sabia que no aeroporto da "capital do meu país", quando o fluxo aéreo está intenso e as aeronaves estão no pátio prontas para decolagem, o embarque dos passageiros se faz por ônibus e neste caso os cadeirantes são levados sentados em suas cadeiras nos braços dos funcionários das companhias aéreas pelas escadas do avião? Sim, a própria! Aquela que sai do solo para a porta do avião. Sensação deliciosa para quem se acidentou em arquibancadas!Será que pensam que esse risco não causaria tanto problema, já que alguém com LM já tem uma lesão medular mesmo e teria pouco a perder? Conclusão: se a vida for binária, um absurdo + outro, origina um zero a esquerda no ponteiro derretido do relógio!??? "Vai saber... quem souber me salve"!


terça-feira, 9 de agosto de 2011

Escolha saltar com os dois pés na água!


Retomando em retrospectiva

Hoje fez muito frio. Meu corpo tremeu. Vejo meus pés se moverem, as pernas mais firmes. Tenho uma sensação indescritível e muita vontade de chorar de alegria. Subo para o banho quente e coberta. Como eu queria que meus parceiros aqui tivessem a mesma evolução que tenho vivido. Por que as preces alheias não funcionam para todo mundo? Será que é porque aguento sofrer menos que eles? Visualizo fora daqui meus projetos, planos, vida. Preciso retomar o rumo. Mas as coisas têm outro sentido, outro gosto, outro valor. Começo a não me reconhecer mais no timbre das horas. Quando eu voltar pra casa não sei que língua vou falar porque tudo tem outro significado. Conheci pessoas que me mudaram para sempre. Nossas vidas bifurcaram as linhas de trem para o mesmo lugar e acabamos partilhando o mesmo vagão, na mesma viagem. Cada um com uma história guardada na mochila. Meus olhos deslizam em volta, contornam a penumbra, afagando de longe meus cúmplices. As vozes me invadem, me buscam lá no fundo.

"Perdi minha mãe e irmã e fiquei paraplégica em um acidente de carro na volta do enterro de minha avó"...

"Eu estava grávida de 7 meses...bati o carro, esperei 15 dias para o parto e só então fiz a cirurgia da coluna porque era a única chance da minha filha sair com vida...e saiu"...

"Na hora que caí do cavalo eu sentia tudo...meus braços, pernas, mas muita dor. Aí os caras vieram correndo e me colocaram em pé...depois disso não senti mais nada, mas não desmaiei"...

"Um cara me trancou, não gostei, desci do carro e discuti...voltei pra o carro e segui estrada. Lá na frente, ele me cercou e atirou no meu pescoço...ele já está solto e eu preso aqui, sem me mover"...

"Minha moto derrapou e eu entrei na parede...eu nem ia sair de casa"...

"Eu caí em uma cachoeira, estava acostumado, mas escorreguei"...

"Eu estava dormindo no banco de trás na hora do acidente, fui jogado, não tive como me defender da pancada"...

"Eu mergulhei e bati com o queixo com toda força no chão"...

“Eu estava no banco de trás. Era o único com cinto de segurança. Um carro veio pela lateral, todo mundo foi arremessado para o lado, menos eu. Ninguém teve nada grave, mas eu fiquei paraplégico”.

Tantos, muitos, outros. A enfermaria silenciava. Tudo calado nesse mundo de imagens e eu aqui, tentando editar o trecho que mudou a vida de cada um. Será que tudo isso é aleatório? Então nem adianta prevenir com atitudes sensatas? De fato, algumas coisas nos escapam mesmo quando somos cuidadosos e então a gente se consola com o clássico generalista: "era porque tinha de ser". Mas estatisticamente a prevenção dá melhores resultados. Penso em tudo que poderia ser evitado: bebida, celular, velocidade, sono e falta do cinto de segurança no volante. Confesso que me sinto uma idiota falando sobre isso porque eu sei que não vou atingir nada nem ninguém. Afinal, por que razão meu desabafo surtiria algum resultado mágico? A comunicação em massa, muito mais incisiva como suas campanhas publicitárias, repetitivas, comoventes, brutais e algumas vezes até apelativas para ver se consegue chocar ou arrancar algum efeito positivo na imprudência humana... ainda assim são infrutuosas! Imagina esse roteiro aqui, banal e saturado. Mas sou eu que estou aqui dentro escrevendo e você aí do outro lado me lendo. Estou em condição de dizer pelo menos algo com propriedade, não acha?

Não tenho a menor pretensão de mudar o mundo com essa postagem, afinal eu sou lúcida o suficiente para não formular metas tão inatingíveis assim. Mas não posso calar a urgência e meu propósito é simples: dar a você uma razão para construir atitudes que reduzam a possibilidade de alguma fatalidade que limite sua condição física. Verdade, você não tem poderes para controlar a manga que cai na cabeça, a bala perdida no seu pescoço, a tartaruga no meio de seu mergulho, a cabeça no teto do carro depois do quebra-molas inesperado, a arquibancada escorregadia, o vírus contraído no sushi ou na lagoa.

Mas pode, por exemplo, começar a obedecer às leis de trânsito, pelo menos as que preservam a vida, porque seu dinheiro não vai pagar a "multa" se o dano for em você ou em outra vítima! Pode também escolher não mergulhar de cabeça em nenhum lugar a não ser que esteja em uma competição de natação ou trampolim! Salte com os dois pés na água, é mais seguro! Faça você uma campanha com essa informação! Não precisa gritar no facebook. Fale com dois amigos, olhando no olho. Peça pra eles falarem para dois amigos. Mergulho é a segunda causa de lesão medular! Por que não vejo isso na televisão!!!? É simples, é uma frase! E evite brincadeiras na borda da piscina, não estrague justamente a festa de ninguém. Quando encontrarem alguém machucado em um acidente, chame o socorro imediatamente, e não se aventure a tocar a pessoa se não conhecer a técnica de resgate. Mesmo que a intenção seja das melhores, você pode provocar a lesão justamente quando manipula a posição da pessoa, ou durante o deslocamento, transporte ou coisa do gênero. E o pior, se só você fizer tudo certinho, ainda corre o risco de se confrontar com alguém que não leu nada disso ou até lê sobre o tema e assiste reportagens na televisão, mas no dia seguinte está de volta as estradas pensando no atraso, no compromisso ou tendo a certeza de que quando bebe torna-se ainda mais atento. Ou que tudo isso é besteira e não há de acontecer nada porque se acha o super-homem (e mal sabe como ele morreu!!). e se você ousar repassar a mensagem para alguém assim, ele pode dizer que é sensacionalismo apelativo. Engraçado... tenho que rir da tristeza, da ironia, do desolamento. Aqui estou rodeada de vida real, de pessoas que moram na esperança da ciência, na demora do nem se, nem quando. Sentados nessas cadeiras, os corações batem, a rotina segue, a vida continua. Retoma-se o prumo todos os dias, fazendo o que se pode com o que se tem. O resto, é sem escolha. Se você ainda tem sua chance de escolher, agarre-a, preserve-a e proteja sua vida. Se não tem mais essa chance de modificar a eventualidade, o dano definitivo ou temporário causado pelo "aleatório", faça algo para impedir que outros conheçam o que conhecemos. Estamos em 2011. Não sei se daqui a 5 ou 10 anos teremos contribuído para evitar que mais alguém se machuque. Na dúvida, alerte: Escolha saltar com os dois pés na água!

sábado, 6 de agosto de 2011

Ainda há tempo: não perca suas meias

Quando era pequena eu acreditava ter criado uma "teoria". Sempre que eu procurava muito um par de meias, em uma pressa desesperada - mas não era qualquer par de meias, era aquele que combinava com os tênis, com a saída e não "cabia" outro - obviamente, não o encontrava e tinha que ceder a um outro sem "graça", ainda que solidário, hiper útil, salvador até, porém tão desvalorizado por causa da situação. Pois bem...dia seguinte, era a vez de perder a chave da gaveta do escritório e dentro dela, estava o documento importantíssimo para fazer a inscrição do...digamos...vestibular, pois aquele dia seria o último prazo...ou, sei lá... a carteira do plano de saúde, pois a consulta marcada há 3 meses aconteceria em uma hora. Sabe aquela busca louca por necessidades específicas e insubstituíveis, deixando rastros do tipo "um ladrão passou por aqui!?”. Adivinhem o que eu encontro ao invés da chave? Claro!!!...é isso mesmo...o tal par de meias...o mais incrível: onde foi parar a super importância daquele mísero par de meias?

Como em um dia, ele era o meu mais precioso tesouro e no outro ele tornou-se tão insignificante? Tenho a impressão de dar importância atrasada ou adiantada a algo, mas nunca com pontualidade...ou sou pontual sim, mas não dou o valor certo a cada coisa. Parece que tudo estava tão ali ao alcance que me dei ao luxo de adiar ou mesmo ignorar. O que isso tem a ver com o que estou vivendo agora? Foi essa a pergunta que lhe veio à cabeça? (não, minha lesão medular não afetou o cérebro). Se foi esse o questionamento, será que essa pergunta veio atrasada ou cedo demais? Bom...por via das dúvidas, eis-me respondendo em considerações: não se pode deixar para última hora a importância de algo imprescindível e incontornável. Desconfie que algo importante passa despercebido enquanto "as pessoas na sala de jantar estão ocupadas em nascer e morrer". Tenho tempo agora de perceber se as pernas funcionam, o caminho com rastros imaginários por onde eu deveria ter trilhado minhas marcas. Tenho tempo suficiente para não ter pressa para nada e enxergar os detalhes mais importantes. Ainda há tempo, fique atento. Não se procrastina a importância ou o valor das pessoas. Não se adia a relevância dos fatos. Não se protela o será necessário ou útil em algum momento. É importante? Então não perca suas meias...assim você não vai precisar procurá-las quando sentir frio nos pés.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Minha lesão parceira


Retomando em retrospectiva:

Progressões óbvias a cada treinamento. Saí das moletas e agora só bengala na mão direita. Tônus que pulsa, pernas reforçadas, o cérebro é que cansa reaprendendo a andar. O chão ficou longe nas passadas sem encontro certeiro, concentração exaustiva. A alegria esfuziante e ainda contida. Cheguei no paredão. Você já sabe o que isso significa: em breve estarei em casa. Revejo, revisito, reexisto nas cenas arrancadas de uma tristeza profunda resgatadas na lupa. E hoje meu coração pincelando de cores nos novos momentos. Eu me pego sorrindo, do nada. Afago perdido no traço do rosto. Ao fundo, vislumbro Toruk, um pouco abandonada pelo desuso recente e talvez, precoce. Tanto fez parte de mim, relação de afeto e desafeto. Pronta pra ser colo de outro. Sim, ela vai ficando no passado. Parece que para a ciência meu caso revela um avanço prematuro. Será que essa ciência ignora o valor de cada segundo dessa condição ou a devastação que dela se alastra?  Abraço o travesseiro. Toque de recolher. As luzes dos letreiros mais uma vez se deitam no assoalho. Lembro do silêncio que antecedeu a despedida de uma “Na’vi” querida que partiu de volta para terra hoje à tarde, se despindo de seu Avatar. O abraço do adeus. Tantos ainda com locomoção em rodas e eu contemplada com uma lesão medular mais que parceira. Mistura de alegria e tristeza...

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Evite!



Retomando em retrospectiva:

Quando você ouve, já foi! Não dá nem pra visualizar a “discórdia” cotidiana. “Deixa quieto”, penso. Mas vocês vieram aqui mais uma vez e depois de uma folga. Então aproveito a retomada da escuta. Sei que é necessário filtrar a intenção das pessoas. Sei que se sentem na obrigação de consolar, de dar esperanças, de expressar um sentimento de compaixão. Mas então façamos o seguinte: independente do que se pense ou acredite, vamos combinar todos aqui que existem coisas desnecessárias a dizer, principalmente porque a lesão medular não é algo exato!!

Se não souber o que dizer, não precisa falar nada e se quiser entender, mande ver. Elabore uma pergunta de maneira sensata, mas evite “sobrar” no comentário porque pode ser completamente desviado e sem noção e de quebra, machucar alguém... Segure aí o que já ouvi...

- Nossa... tão nova e tão bonita nessa cadeira de rodas... (“Quer dizer que se fosse velha e feia não teria problema?!?!?”. Evite fazer elogios atropelados!)

- Pra voltar a andar só depende de você! (“Nossa, que fácil! Por que não pensei nisso antes???? Já pensou que legal!? Gostei dessa! Não é hora de dar uma de “Roberto Benigni em A vida é bela” ou “Pollyanna, no jogo do contente”! Fui longe agora hein? A Pollyanna já deve ser avó!". Evite resolver a vida dos outros com um sonrisal – e esse, ainda existe?).

- Se você não voltar a andar é porque não tem fé (“Esse é o clássico! Será que o fato de ter a medula seccionada também não complicaria a recuperação da função medular? Eu particularmente tenho um quadro clínico que no momento me permite acreditar que posso, mas não se pode fazer disso regra geral e nem mesmo arriscar comentário sem conhecer o assunto.” Evite justamente constranger a fé alheia.)

- Minha filha teve uma lesão medular, ficou 6 meses sem andar e hoje está boazinha, andando pra todo lugar. Você também vai ficar boazinha! (“Como assim? E se ela não tivesse voltado a andar, isso ainda daria chance a alguém de voltar a andar? Se ela andou, todo mundo anda?”. Evite comparar as pessoas e suas lesões!).

- Ele está com dificuldade para voltar a andar. Pode ser coisa da cabeça dele (“A dificuldade em lidar com a limitação e dependência física mexe sim com a cabeça e o emocional...mas não provoca uma lesão imaginária na medula – a medula com gravidez imaginária!). Faça assim, se você entender bem do assunto, espere até ver todos os exames específicos ou o laudo deles. Se não entender, melhor não especular. Quando cada um diz algo diferente, é muito pior. Evite dar diagnósticos se não for o médico do paciente.

- Se o cara mexe as pernas, é porque vai voltar a andar (“Esse movimento que você percebe pode ser voluntário ou involuntário – espasticidade. Este último é uma espécie de contração involuntária capaz de mover um membro e mantê-lo contraído por longo tempo em algumas pessoas com problemas neurológicos como a lesão medular...e se não for este caso, saiba que tem gente que pedala em bicicleta estacionária adaptada e nem por isso anda.” Evite relacionar causa e consequência, este caso não é matemático).

- Como vocês "defecam" se nada funciona da cintura pra baixo? (“Sentada mesmo”...minha nossa... Evite agir como um “ser sem noção”!!!)

E a minha preferida:

- O cara era normal e depois do acidente ficou que nem vocês (“Anormais!!?”)