sábado, 11 de junho de 2011

A hierarquia desse esforço faz de alguém mais ou menos culpado?

Improvisei um acento para arranhar a tinta no caderno. Com o calor da mão na caneta, com a pressão dos dedos no papel sem freio, derramei a alma num rabisco sem direção. O desenho da frase se empenhando sem sucesso em me traduzir. Partilho então incógnitas vividas, lamentadas ou jamais experimentadas. Não vislumbro mais o horizonte. De onde estou, alcanço apenas alguns metros esbarrando-me em minhas próprias limitações. Eu ali, velada pelo Saramago ensaiando a minha própria cegueira. Circulo em uma ilha móvel que me separa do que até então eu representava. Olhares me devoram, me negligenciam, me navegam. Muitos piedosos, outros desprezíveis, alguns destemidos. O único ponto em comum entre eles é a culpa, talvez. Esse abismo que emudece qualquer vã atitude e se pune por pensar em ter a chance de ter talvez o que o outro deseja e que nunca poderá alcançar.

- Come peixe? – Disse a copeira da radiologia interrompendo minha "abdução" interna.

- Como sim – Respondi assustada.

- Melhor levantar os braços da cadeira pra se apoiar na mesa. – Disse ela.

Assim fiz e ela retomou mostrando sua experiência em perceber minha inexperiência:

- Faz pouco tempo, né?

Deu vontade de dizer "Depende, pra mim parece uma década". Mas me contentei em dizer apenas:

- Dois meses.

- Alguma melhora? – Seguiu ela no seu interrogatório camarada.

- Considero melhora alguns avanços. Retirei a sonda, a fralda... – Eu disse, timidamente.

- Então já controla bexiga, né? – Ela indagou.

- É, controlo. Também não tinha sensibilidade nas pernas e agora já tenho. – Empolguei-me e prossegui:

- É meu maior ganho! – Disse eu, apontando orgulhosa para os pés que prontamente obedeceram a meu comando mexendo as pontas vigorosamente.

Ela me fez sinal de positivo e ao mesmo tempo pegou outra bandeja de comida e deixou na mesa ao meu lado esquerdo, onde surgiram um rapaz cadeirante com sua esposa. E seguiu me dizendo:

- Isso é bom, dá esperanças, né?

Olhei para o lado e vi que ele era "tetra". Perguntei-me desde quando ele estava ali. Se desde a sonda retirada, a fralda descartada, a sensibilidade recuperada...respondi incomodada:

- É...nem sei...

Ela retomou:

- Mas são sinais de melhora.

Eu num estranho mal-estar, relativizei:

- É...mas não quer dizer muita coisa. Eu nem mexo muito e no mais, faz tempo que não evoluo. Eu disse olhando pra eles, querendo forçar um sentimento de cumplicidade. E ainda completei com a frase daqueles dois desconhecidos do corredor:

- "Mas o importante é que estamos vivos".  – Não convenci nem a mim.

Ele não deu uma palavra, só mastigava a comida levada a boca por sua acompanhante. E ela soltou algo como "é mesmo" só para eu não me sentir isolada na minha sequência. Eu fiquei sem saber o que dizer. Despedi-me momentos depois com estranho pesar de poder rolar minha cadeira sozinha e ele não. Entendi agora o "não sei o que dizer" dos que andam...ou até a tentativa desastrosa de amenizar o sofrimento usando artifícios infrutuosos. Uma mistura de impotência e obrigação em fazer algo.  Novamente me veio a sensação do livro que li sobre aquela história contada pelo Jean-Dominique Bauby que depois de um AVC, de todo o corpo ele mexia apenas a pálpebra esquerda. Através de suas batidas pode dizer "sim" ou "não" às letras apontadas em um papel por sua fisioterapeuta para se expressar formando frases.  Descobri no meio da minha leitura que cada letra de cada palavra daquele texto tinha sido expressa pelas piscadas de seus olhos. Exato, ele escreveu um livro inteiro pelas piscadas de sua pálpebra. Ainda tenho essa sensação indescritível na alma. Eu me perguntei se elas (as pálpebras) foram inundadas de emoção quando as minhas estavam sendo. Portanto, caro leitor, nem meu companheiro de almoço que movia a cabeça, enxergava, ouvia e podia mastigar, nem eu que rolo minha cadeira, nem você que anda escrevemos pelas mãos ou nenhuma outra parte do corpo o que o Bauby expressou. A hierarquia desse esforço faz de alguém mais ou menos culpado?

8 comentários:

  1. Belíssimo relato reflexivo... Aqui acompanhamos seus passos evolutivos, a cada post sinto uma evolução de suas ideias e concepções... Uma nova sensação é expressa e sentida. Parabéns pessoa admirável desde sempre! Bjus e lembre-se estou aqui... S2

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  2. Iara..um passo após o outro e um dia de cada vez...assim se faz minha evolução. Sei que está aí na janela..obrigada pela presença. Beijo

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  3. Desde que o mundo é mundo, a comparação com o outro desperta vários sentimentos em nós...
    Inveja, compaixão, conforto, culpa...
    Sempre vamos encontrar guerreiros em situações piores.
    Adorei o seu estilo de escrever...

    bjs

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  4. Seja bem vindo (a)...é sua leitura sensível que faz meu estilo ser interessante. Obrigada por sua apreciação.

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  5. Você é uma grande escritora, amiga. Deus a abençoe.

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  6. Olha quem me fala...rsrs..obrigada pelo carinho.

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  7. Além de te acompanhar mais de perto, essas leituras são uma experiência. muitas lições de vivencias muitas vezes dolorosas, reflexões e concepções de um lado diferente da sua vida. bjus e saudades.

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  8. É o objetivo mesmo...um convite a um olhar mais aprofundado e introspectivo pra si mesmo. Beijos,saudades de vc tb.

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