segunda-feira, 9 de setembro de 2013

Experimente a "Inclusão reversa"

O mundo segue girando. O sol mudando a sombra de um lado para o outro e tudo passa despercebido. Os noticiários continuam mostrando gráficos e índices de acidentes automobilísticos com vítimas, anunciando casos de mergulhos malsucedidos em águas rasas...mais pessoas têm seus movimentos diminuídos, provocando mais readaptações, mais isolamento, mais mudanças de planos e tudo o que disso decorre...surgem então os novos soldados que descobrem a falta de acessibilidade e de humanidade. Afinal, tudo o que foge da padronização, todos que são diferentes das convenções, devem se curvar a uma forma adaptada de vida...e o gesto ou a condição que permite isso, é chamado de inclusão. Novos discursos de inclusão se formam e eu penso: Inclui-se o que ainda não foi inserido ou que foi naturalmente excluído. Porém, inclusão deveria ultrapassar este entendimento de sentido único...deveria ser um termo positivamente "ambíguo"...porque também é necessário incluir-se na vida do outro, mão e contramão, ida e volta. Incluir-se, também é experimentar o ônus e o bônus de quem foi modificado. Afinal, vivenciar o outro, faz perder o senso de discriminação, sem precisar, no entanto, eleger os protagonistas heróis nem coitados. Por essa razão, dedico esta escrita aos que sempre estiveram comigo, independente da condição em que eu estivesse incluindo-se em minha vida...e assim faço uma homenagem ao Guigo... o andante que batizou esse humanizado "movimento" de partilha de "Inclusão reversa".




ps.: IMPORTANTE: a postagem não faz de forma alguma apologia a venda do produto (até porque seria contraditório visto que estaria favorável a uma das principais causas de acidentes automobilísticos). O vídeo foi apenas para ilustrar a "Inclusão Reversa", afinal, no país em que a propaganda foi realizada, as pessoas deixam o carro em casa quando saem para beber.


domingo, 21 de julho de 2013

A porta que reabre, o processo do recomeço

Depois de longo sumiço, reapareço recontando a estrada. Esta poderia enfim ser a última postagem da sequência de um parêntese aberto...mas é somente um dos lados da mesma ponte. Travo fragmentos desses momentos talhados na memória e de inédito, só mesmo o mistério do desconhecido...ou quem sabe, o primeiro dia em que a "porta da rua" se reabriu para mim. Dedico, portanto, este "retalho" aos que recomeçam todos os dias e carregam nos braços a "esperança de óculos"...a todos aqueles que passam despercebidos ou deixam inexplicavelmente escapar-se por um triz, apesar do algo incontornável e imprescindível...aos que não têm escolha e aos que escolhem, sem fugir...a todos aqueles que permanecem um eterno parêntese aberto...a todos "os meus"...dedico este encadeamento de imagens a esta sensibilidade íntegra que nos aproximou. De fato, "o fim é uma forma de recomeçar"...e é assim, minha vida segue...




quinta-feira, 12 de abril de 2012

Hoje é 12 de abril...faz um ano

Voltei...estou em falta comigo...os afazeres me deglutiram inteira. Uma sede interminável de produzir. Mas ainda assim, não tive como esquivar-me do reencontro com o tempo... seria injusto...porque é necessário lembrar daquele dia, e já faz um ano. Por essa hora, ano passado eu não tinha a menor ideia do que iria me acontecer em algumas horas...tive a impressão de cair em uma eterna noite sem estrelas para me guiar. Fui enterrada viva e não sabia mais como me trazer à tona. Por culpa? Por negligência ou desatenção? Pela escolha equivocada no caminho? Poderia ser qualquer coisa, mas nenhuma justificativa afagava o resultado. Cada segundo foi eterno e estagnante. Eu contei para mim, mas eu não conseguia acreditar. Tudo esguio, trépido, amargo...espécie de nostalgia ou saudades do que eu deveria ter feito antes do acidente, do que eu havia desviado, desistido de viver, adiado...tudo vinha como um rolo pela garganta para engolir, sem lamentações. Conheci anjos dentro de seus avatars que modificaram a rota do meu sentido, e mostraram o gosto da busca e o tempo que dura a esperança. Fui parada pela vida para amá-la muito mais. Sei quanto dura um segundo quando dói. Nessa parede branca na qual escrevi e ainda arrisco algumas notas, aproximei-me de você, conhecido ou desconhecido do outro lado dessa tela. Não foi som mudo de quem aturou meu monólogo. Portanto, nessa virada de calendário, revisitei como um filme minha trajetória em um resgate pessoal. Voltei hoje, boa razão para retomar a escrita... Dia 12 de abril...parece clichê...não me importo...mas hoje é o aniversário daquele golpe incisivo, e verdadeiramente o acontecimento que marcou o primeiro dia do resto de minha vida.





segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Quando a vida arde...

O óbvio prega peças...leituras, vozes, concentração, clique de telas, dedos correndo nos teclados...prazos, datas, agenda, calendário...tenho que cumprir...a rotina voltou com força para os meus braços e eis que é muito bem-vinda... Consegui alcançar o trem da história que havia partido sem mim. Tudo mudado...alguma coisa tomou outro tom, estranha linguagem, obsoleta tradução. Os sons precisos se amortecem longínquos vez em quando, dando lugar a pensamentos, sentimento de distância, recuo. A vida não se importa quando nos sentamos na borda para refazer o fôlego porque ela segue impiedosa, voraz, apressada. Fui ali, encolhi-me em uma bolha e quando voltei, retomei a sequência, perdi o fio da meada... sem entender o que aconteceu nos capítulos estagnados de minha vida. Uma linha tênue, rasa, reta, morou na lacuna como um traçado morto, sem ação nem vida. Juntei o amontoado de papéis sobre a mesa, encaixei os livros na mochila e já nem ouvia mais os recados, os afazeres. Meu olhar vago no horizonte curto. Lembrei do clima da volta do Noland interpretado pelo Tom Hanks que foi o náufrago solitário vítima de um acidente aéreo, resgatado depois de 4 anos, confinado naquela ilha deserta. Tudo tão sem significado, tudo tão diferente de antes...antes do acidente ele só pensava em bater recordes vencendo o tempo...quase isso em mim...irônico, mais uma vez...sigo, me despeço, digo "ok" para todos os afazeres, compromissos, obrigações. Saio sem pressa, andando por aquele lugar tão familiar e ao mesmo tempo tão modificado. Cumprimento alguns passantes como se revisitasse um set de filmagem. Atravesso a catraca da saída, visualizo na frente do prédio a vaga para portadores de deficiente físico repleta de motos..."perdoe porque eles não sabem o que fazem?". Espero sinceramente que eles não saibam nunca um dia o que significa ter que ocupar aquele lugar por direito... "conquistar" aquele "privilégio". Mas não resisti e falei para o motociclista que estava chegando:

- Por favor, você pode não estacionar aqui. Mas pode me ajudar a deslocar as outras motos?

- Mas é jogo rápido.

- Eu sei disso... a vida da gente pode mudar bem rápido mesmo. De uma hora para a outra a gente guia uma moto e depois vai para uma cadeira de rodas.

- Vixi que trágico. – disse ele rindo e continuou:

- É só pra pagar uma conta, tô atrasado e se estacionar longe, já viu, né? Vou ter que vir andando e gasta mais tempo. Mas se chegar alguém aí você dá um grito e eu venho tirar a moto.

"Se eu tiver que vir andando"...nem acreditei no que ouvi...um ensaio sobre a cegueira novamente...a civilização a beira de um colapso...se ele não quer perder tempo fazendo aquilo que pode fazer, imagina o tempo e o esforço que perde alguém que não tem escolha, estaciona longe e vem tocando a cadeira de rodas ladeira acima porque ele não pode chegar atrasado? Retomei a fala:

- Posso fazer uma pergunta?

- Diga. – disse ele, já fora da moto.

- Se tivesse um guarda de trânsito aqui, você se importaria de chegar atrasado?

- Aí já é uma questão de multa, não sou otário e ia me virar. Por quê? Vai chamar o guarda, é?

- Não, não... era só para saber mesmo o que tem valor na sua vida. Obrigada.

Meu mundo paralelo gritando...saí andando sem olhar para trás...a vida arde.



quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Go Kalina!

Era sexta-feira, 15 de julho quando me firmei entre moletas pela primeira vez. Já descrevi isso antes...mas ainda não me convenci de ter transcrito a sensação na íntegra...passei dias acordando durante a noite para verificar se minhas contrações eram reais ou coisa de sonho, como aquela sensação do contrário do alívio. Sim, eu acordava assustada para checar meu ganho motor. Acordava para saber se minha felicidade tinha sido efêmera. Aliás, preciso ir além da descrição dessa sensação por outra razão, por um detalhe fundamental e comovente. Estremecer no sensor das forças, latejar os dedos dos pés na irresistível vontade de coçá-los com vigor provavelmente por causa da circulação sanguínea espalhando-se nas artérias e revitalizando a pele e tirando-me da estagnação. Nada disso, ou tudo isso, me resgata de retorno a borda da vida. Mas anuncio... coincidência ou não, dois dias depois de me colocar de pé apoiada nos acessórios, apesar do confinamento da internação, "corri" colada nas costas de uma amiga de infância, durante os 42km de uma maratona mundo a fora. Ela me "carregou" durante 4 horas 13 minutos e 36 segundos em minha primeira maratona. Filmou na retina paisagens do caminho, partilhou comigo sensações de superação, lado a lado. Era dor, cansaço, emoção. Ouviu meu nome nos gritos dos anônimos durante o percurso ..."Go Kalina!!!". E até uma cadeirante urrando palavras de incentivo. Minha amiga ainda não sabia do meu progresso, nem dos meus sonhos de poder avançar novamente no mundo de maneira autônoma, e quem sabe até, com as próprias pernas...e mesmo assim, me arrastou em seu fôlego, como tantos outros amigos e anônimos o fizeram a sua maneira...desde a intenção positiva, a presença, as promessas, os pedidos em seus credos, a torcida permanente, homenagens, sacrifícios.

"Tem coisa que não tem nome"...não posso chamar apenas de "substituição" o ato de alguns colegas assumirem todos os meus compromissos acadêmicos, em um semestre em andamento, defendendo meu nome, e tentando imaginar como eu resolveria ou faria algo se estivesse ali...eles me representaram...uma carga impensável de trabalho somada ao que eles já tinham...não posso chamar somente de "solidariedade" o fato de ter me carregado no colo pra o banho, pra o sono, médico ou fisioterapia, pra vida, ver o mar, pessoas importantes...cuidado com tanto afeto de meu cachorrinho lhe suprindo qualquer vazio ou dúvida sobre minha volta pra casa, pensado em um travesseiro melhor, almofada adaptada, proteção contra escaras, óleos para hidratar a pele, ou outros acessórios para meu conforto, provido meus armários de alimentação, dirigido meu carro, empurrado minha cadeira, exercitado minhas pernas por mim, resolvido minhas burocracias de trabalho, estudo, vaga na internação, passagem aérea, mudança de apartamento. Não posso nomear somente de "acolhimento" o que aconteceu em Brasília... o "berço" preparado, o café da manhã, a privacidade e respeito por meu silêncio quando minha alma só queria calar a dor...companhia, saídas, carinho, ...como a passagem sincrônica de um bastão. Meus "cuidadores" em Pandora...de treino a treino, remédios, escuta, comida. Meus visitantes, indefesos diante do novo estranho...não tenho a menor capacidade de descrever os olhares distantes e silenciosos, a alegria evasiva de meus companheiros avatars com quem aprendi o significado da continuação, esperança no perdido e paciência na demora. Não tenho como esquecer o incentivo dos que me fizeram falar, e exigir a criação do blog para ter notícias minhas. Não tenho meios para definir o valor disso tudo. Não sei conceituar o perdão concedido por todos eles a meu isolamento, a minha retração, meu choro irritado. Só sei que causei preocupação e tristeza a quem só merecia minha alegria. Então, hoje presto minha sincera homenagem a todos, sem exceção, que se sentiram e estiveram de alguma forma perto de mim, me trazendo nas costas como essa maratonista valente que configurou metaforicamente cada um deles, com todo esse sentimento de carinho, pelo qual serei eternamente agradecida. Go Kalina! E eu fui!

A você Van, por ter dado um nome ao que não tem nome, por ter representado o gesto de cada protagonista de meu trajeto e descrito com sutileza em nome de todos, o valor da partilha e amizade.





Fechando o parêntese...vírgula

Não, ainda não acabou...meu manuscrito está vivo como meu coração firme. Não abandonei o passo. Foi apenas uma pausa, na tentativa de alcançar a vida sem perder o fôlego. A volta, o aeroporto, reencontros, surpresas, choros. O cheiro de meu cachorro de volta pra mim. Dias seguiram...rotina, trabalho, amigos, casa nova. Recuo como em um filme. Tenho vontade de ganhar o mar. Tanto a fazer e mal sei por onde começar. Joguei fora as preocupações patéticas do antigo futuro, me desfiz do que não me cabia mais. Leve, sem amarras, seguindo. Trago coragem e planos. Tenho sede de justiça pelo respeito aos que têm prioridade e esperança nas mentes que sonham e lutam em tornar andantes aqueles que perderam seu passo...nem heróis nem coitados dos quais faço parte porque também fui ferida pelas fatalidades, e respingou em mim para sempre. Revi minhas queixas e raspei as estampas sem cor. Agora vou tocar o rumo, sem tormento porque "Minha arte é brincar de renascer".

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Tire a mão da barra

Retomando em restrospectiva

"Tire a mão da barra"...um start me autorizando a ir em frente sem medo...apostar no equilíbrio certeiro, no passo firme, determinação para tocar em frente, sem dúvida. Entender o silêncio, o gosto da lágrima, a espera. Querer o incerto, reavivar a alma sem perder o prumo, sem ceder a tarde. Em um segundo minha vida muda, desaba...eu era de um jeito e fiquei sem ele. A lucidez é ácida... "Se desmorono ou se edifico, se permaneço ou me desfaço"...extrato de um filme e esse é inédito... e sem encarte nem sinopse...as imagens vão nascendo com um segundo de antecedência...coração me enchendo por dentro...os momentos precedentes ainda ecoavam na minha mente...assim entrei na sala. Eles eram 12 e entre eles meu médico. Atravessei a sala em linha reta.

- Onde você mora? – Indagou o médico-chef, imagino eu.

- Em Natal.

- No aeroporto de lá, a saída do avião se faz por finger ou no pátio?

- Finger...

- Ah...assim não tem graça... – Ele riu em seguida e eu também!

Creio que recebi alta. Depois de uma hora de conversa, saí. Os corredores pareciam sem fim. Eu com pressa de viver. Choro e riso. Vontade de decolar. Recebi muitas restrições, obviamente. Mas todas elas me devolviam a vida, sem mesquinharias. Muitas perguntas me foram feitas e as respondi como se as respostas já estivessem prontas desde o começo de minha vida ou em seu recomeço.

- "Vocês sabem tudo sobre lesão medular, têm uma experiência indiscutível e incontestável.  É importante fazer um dia de treinamento na pele de um paciente LM, vivenciando sua vida. Isso dá certamente a ideia do nível de dificuldade que passamos na rotina. Mas ainda assim, não conhecem a condição de uma pessoa com lesão medular".

- Você deveria abrir um blog. – disse uma médica. Mal sabia ela que isso aqui já me contava.

- Sua recuperação foi inacreditável. Como você vai dizer para as pessoas?

- Eu tenho que dizer primeiro para mim...Renasci dos escombros, bem mais forte e voraz.

"Não perca sua segunda chance, você caiu pra cima!”.

Não vou desperdiçá-la. Pode deixar. Meu caminho tem outro Norte e vou trazer sempre comigo o que me modificou. Não me esqueço do que me machucou, mas não vivo disso. Vivo do que me dá verdade e sentido. Não vou perder de vista cada centímetro que me arrastou, cada segundo que me construiu, cada gota de suor e respeito a dor. A solidão é mesmo calada. Vou voltar para casa...diferente...não ilesa...não imune...uma alegria constrangida...feito um soldado que volta de uma guerra, deixando seus companheiros no terreno de batalha, na luta, já cheios de marcas e limitações. Estarei entre dois mundos, confrontando desejo e realidade. O que farei de quem me transformei? O que eu faço de quem me tornei? Não sei...eu só sei que "me vejo o tempo todo começar de novo"...e sou e tenho tudo pela frente...O começo do recomeço ...e...tirei a mão da barra.






terça-feira, 16 de agosto de 2011

Não perca mais seu norte!

Quando eu era pequena, insisti para minha mãe comprar uma bússola. Minha grande descoberta em um desenho animado do professor Pardal. Achei a engenhoca fantástica. Na minha cabeça essa invenção impediria que eu nunca mais me perdesse dela. Bom, obviamente ela não se animou em comprar um equipamento tão sofisticado para uma menina de 5 anos, mas em contrapartida me confortou dizendo que a bússola era como um coração, que quando me sentisse perdida, conversasse com ele para me guiar. Mais tarde entendi que tinha sido uma tentativa poética de minha mãe querendo se livrar das minhas solicitações sem lógica ou então, uma sementinha plantada para reflexão futura...ou talvez, ela se orientasse dessa maneira. Não sei dizer, até porque abandonei essa ideia de ter uma bússola ou de substituí-la por algo que já morava no peito e que de fato, eu não poderia manipular. Tinha esquecido de tudo isso que veio à tona somente dois anos após a morte de minha mãe, justo no dia de me mudar para o Brasil em decisão "definitiva-temporária", depois de 13 anos longe do ninho. Não sei por que, lembrei dessa história de infância. Provavelmente por causa das dúvidas, incertezas, do desconhecido, das escolhas inevitáveis, das bifurcações que a nova vida poderia me trazer...  eu contei essa história sentada em um café para o amigo que iria me acompanhar na viagem de volta. Ele me perguntou: "você já teve uma bússola"? Eu ri...porque era muito em sentido figurado. Mas respondi "queria uma, mas que fosse para pendurar como um pingente. Teria que ser minúscula, pois é só para ser simbólica". Assim peregrinamos em muitas lojas de navegadores e nas esportivas, até acharmos um chaveirinho contendo termômetro e bússola. Extraímos a relíquia cuidadosamente quebrando o bloco de plástico em volta e voamos para o Rio de Janeiro na mesma noite. Dia seguinte, nos despencamos para um bairro nos arredores do centro. Ele parecia tão empolgado com a minha causa quanto eu. Invadimos uma rua entranhada de cubículos, salas minúsculas, apertadas e entulhadas de miçangas, paetês, lantejoulas, strass. Era o verdadeiro mercado de fragmentos para montagem de fantasias, um amontoado gigantesco de espeluncas. Procuramos de porta em porta por algumas horas alguém que topasse confeccionar minha "joia rara". Todos muito atarefados, mal me ouviam. Só me recomendavam sempre outro lugar, outra pessoa, até que contei minha história para um artesão. Era de meia idade, robusto, avermelhado com pelos saindo do nariz. O cenário de fundo repleto de restos de tudo, partículas minúsculas de brilhos empoeirados... teto carregado de vidrilhos de todas as cores, chão surrado, paredes encardidas, pouca luz. Um cenário inesquecível de filme: uma sala dentro da outra que era dentro da outra...um labirinto, caverna, túnel e nos fundos uma oficina. Ele tomou a bússola entre as mãos, com unhas escurecidas, braços manchados, coberto de suor. Puxou os óculos para a ponta do nariz. Examinou por todos os ângulos minha "herança". Apoiou os braços no ventre e disse olhando por cima dos óculos: "entre aqui, acho que dá pra fazer algo". Pegou uma moeda holandesa, acertou nela a dimensão da base da bússola. Muniu-se de alicate e martelo e manipulando-os criou o encaixe. Testou uma cola, depois ferramenta e cola novamente. O suor não tardou a escorrer pela testa. Assentou outro tipo de cola e nos olhou: "voltem depois, vai demorar". Assim fomos e voltamos uma hora mais tarde, já em volta do pescoço com o cordão predestinado a preciosidade. Percurso do combatente, um périplo. Ele me mostrou enfim a maravilha. Estava perfeita! Simples e significativa. Eu disse "não sei nem como agradecer. Pode dizer quanto, pagarei o que quiser, isso é muito importante pra mim". E ele me respondeu: "Não foi nada, eu é que agradeço a você por ter me deixado participar dessa história tão linda...não perca mais seu Norte, seja feliz".

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Eu, esperando por mim



Retomando em retrospectiva

Desci, era cedo. O ascensorista me sorriu. O som do elevador cantarolava uma canção antiga, melancólica..."silêncio e sons". O dia parecia não ter acordado. Revi meu programa da jornada...preenchido...TF, musculação e psicologia.

- Bom dia. Hoje às 14h a equipe quer ver você. Vão discutir dois casos e um deles é o seu. Mas chegue na hora. – disse meu terapeuta funcional).

-É, já sei, vou sim. É no laboratório de movimento, não é?

- Isso. Mas vamos ver se hoje você já vai sem a bengala.

- Andar assim sem a bengala? Mas tenho que treinar porque nunca fiz isso...

- Você tá carregando a bengala já. Vamos ver, hoje você caminha entre as barras.

Meu corpo tremeu inteiro. Tive a impressão de ficar tonta. Deu um zumbido no ouvido. Suei frio. Parecia que a cor sumia em dégradée, vindo da cabeça até os pés. Tudo ficou lento e os sons se apagaram. Pensei que era o teste final, o começo do fim, o antes do recomeço. Era como qualquer coisa que me largava em uma estrada estranhamente familiar, no meio do filme, sem paraquedas... o frio na barriga, chaud au coeur (coração aquecido), plexo solar assanhado como um rastro crescente e redondo deixado por uma pedra lançada no meio do lago. Algo em mim "movendo a água abandonada"... o chão parecia um abismo de tão distante de mim. O cérebro descoordenado, balbuciando os ajustes. Estou descrevendo a sensação porque poucas pessoas vão saber o que significa perder e recobrar. Então, leia...

Olhei do alto para meus pés, sem me curvar. Os olhos esticaram para medir o espaço. A bengala grudada na mão...meu sensor, meu guia, meu apoio...a hora da despedida, a volta a autonomia. Talvez ela me dissesse "a estrada é sua, não precisa mais que eu dite os buracos pelo mundo a fora"...memórias retalhadas de emoção. Em frente, o espelho...e nele alguém familiar...eu, ali, refletida, em pé, esperando por mim.

Sobreviver no desafio

Retomando em retrospectiva

Ok...nem dá para esconder de que estou me esquivando...evito falar sobre minha condição sobre o "andamento" de minha vida. Estou progredindo, mas há uma rediscussão sobre a possibilidade de minha cirurgia na cervical...é, novamente. A equipe médica vai se reunir e estarei convocada para participar e ouvir o anúncio final da decisão. Estou fazendo também um diário miccional que é uma espécie de registro da quantidade de urina expelida. Em seguida, a enfermeira passa um aparelhinho para observar o comportamento da bexiga. Esse procedimento é necessário para avaliar minha função vesical e saber se estou apresentando urina residual. Também vou repetir um exame: potencial evocado motor para membro superior para identificar algum eventual comprometimento já que a ressonância apresenta uma compressão medular. Eles precisam desses dados para visualizar o estado geral e avaliar com maior profundidade a necessidade de intervir de forma cirúrgica. Não consigo dormir por causa da ansiedade da resposta. Ansiedade por medo de escapar os ganhos motores durante o sono. Como se o estado de vigília fosse capaz de me manter em movimento e prolongar a realidade atual. Em volta, meus amigos recentes estão aprendendo autonomia, ajustando algumas disfunções, tocando a vida, mesmo com avanços motores estagnados. Eu estou preste a deixá-los em seus avatars ou a me eternizar na recuperação de uma eventual cirurgia. O tempo martela no coração arrebatado. Grito preso de angústia e de alegria. Em um flash me vejo ganhando o mundo, vivendo os planos e em outro, me imagino deitada, imóvel, sedada esperando minhas vértebras se reintegrarem. Resta aguardar a decisão da equipe médica.

Enquanto isso vou revendo meu percurso: desde os tubos da UTI...paraplegia traumática, movimentos distais discretos e débeis escapados de uma tetraplegia que ainda me ameaça potencialmente, esboço de contração no quadríceps no meio de um alongamento, força gradativa, theraband, andador, duas moletas, uma moleta, bengala...três meses...ainda não acredito...mal consigo concretizar essas imagens na minha cabeça, esses movimentos...você não tem a menor noção...é indescritível... Não devo mais temer nada... a vida segue, não importa o que houver. Não sinto saudades de mim, sinto falta de viver de outra maneira...de realizar as vontades que desfalquei, de desenterrar as ideias, de resgatar os rascunhos da lixeira, de queimar o manual de instrução, de virar a página, apagar as manchas, de traçar e de seguir. Se eu "sobreviver", tenho um mundo pela frente. Tenho chances porque "mudei pra sempre". Aprendi a distinguir cuidado e medo, esperança e expectativa, diferença e desigualdade...o valor justo de cada coisa, a voz do silêncio, o tamanho do passo, a fragilidade da vida, a representação da presença...e não duvido do desafio porque ele me cabe e me constrói...

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Einstein, Dalí, Gandhi e Arafat no elevador quebrado do "teatro do absurdo"!


Retomando em retrospectiva


"Se a vida for binária, a Origem vai me dar uma explicação sobre Matrix". Acordei lembrando dessa frase dita por um garoto de 17 anos na entrada do hospital. "Esse guri não diz coisa com coisa", comentou alguém a respeito. Ficção científica não é o meu forte...mas aqui experimentamos todos os dias a magnitude de uma ficção científica esperando que a mesma se torne real um dia (afinal, estou no meu avatar, não esqueçam!). Na minha opinião, foi quase um trocadilho de sentido cinematográfico, meio futurístico e com humor ou pelo menos perspicaz apesar de ainda nebuloso para meu espírito "lógico". E no mais, "é sempre perigoso zangar-se com aquilo que não se compreende", como anunciou Druon com seu dedo verde. O compreensível me conforta mas seu contrário me intriga e me deixa em dia com a fome de buscar, de viver...é como uma inquietude que vem do enroscado de fios que a vida tece com pressa. Estou consumindo os dias, devorando meus últimos grãos da ampulheta por aqui...então você há de convir que eu não poderia deixar de saborear as entrelinhas deste epílogo...essas sensações de guerra interna contra os elementos do ilógico...veja...vivo em um universo social...e não havia percebido antes que o mundo visto pela janela, pela tela da televisão me parece bem estranho, bizarro...deve ter sido esse sentimento que os astronautas vislumbraram olhando a terra do espaço depois de tantos dias sem convívio...como um ponto ao avesso, na contra-mão da rotatória, carrossel rodopiando no tornado, tempestade de traçados sem norte, vácuo entorpecido pela ansiedade...um verdadeiro "teatro do absurdo" que bem poderia transformar-se no "teatro mágico"... mas creio não ter habilidade para tratar a realidade de forma tão inusitada e poética, apesar de minha indignação  latente ...ela me é também cruamente e cruelmente sóbria....me remete às entranhas, às eras longínquas de minha existência... traz-me Sra. Lussigny, uma professora de fonética que cruzou meu caminho...tentando me explicar a inspiração do relógio fundido do Salvador Dalí a partir da visão de um camambert derretido... "ele relacionou sua arte com a concepção do tempo segundo Albert Einstein:"o tempo é relativo e não fixo"", dizia ela...lembro ter passado meses para entender isso...esperei tanto minha inteligência latejar uma faísca sequer de manifestação..."Gente, o Dalí derreteu o relógio por causa de um queijo pensando no tempo do Einstein!". Parecia que estava tão ali, as claras! Mas e daí né? A intriga se renova e agora curto as incognitas da Origem cogitada a destrinchar Matrix...o mais interessante nem é a descoberta em si ou a resposta, mas o que a busca por elas faz em você...então qual é a trama? Entender a ausência de lógica no óbvio! É, o absurdo é assim mesmo, contrário a razão. Estou mesmo vivendo cenas surreais...e nem peço que me entendam...mas imploro que atentem para, sobre e a respeito... da autosabotagem praticada por quem tem medo de dar certo na vida...e da omissão exercida por quem é incapaz de importar-se com o que não o atinge diretamente...quer ver? Alguém aqui atentou para o Nobel da paz que o Mahatma Gandhi nunca ganhou e em contrapartida o Yasser Arafat imprimiu um em seu currículo!?? Um pacificador sem qualquer ato de violência e um líder terrorista..."O mundo está ao contrário e ninguém reparou"? Absurdo, não? Mas vocês podem contra-argumentar dizendo que a Índia e a Palestina ficam bem longe daqui...quem se importa se tudo parece muito "surreal"? Certo...deixemos então nossos convidados em paz...vamos lavar a nossa roupa suja ...alguém sabia que dos três elevadores do aeroporto Augusto Severo em Natal (sim, apenas três, o que já é um absurdo!), apenas um está funcionando (outro absurdo!) e isso há dois anos (absurdo master!)? Alguém sabia que no aeroporto da "capital do meu país", quando o fluxo aéreo está intenso e as aeronaves estão no pátio prontas para decolagem, o embarque dos passageiros se faz por ônibus e neste caso os cadeirantes são levados sentados em suas cadeiras nos braços dos funcionários das companhias aéreas pelas escadas do avião? Sim, a própria! Aquela que sai do solo para a porta do avião. Sensação deliciosa para quem se acidentou em arquibancadas!Será que pensam que esse risco não causaria tanto problema, já que alguém com LM já tem uma lesão medular mesmo e teria pouco a perder? Conclusão: se a vida for binária, um absurdo + outro, origina um zero a esquerda no ponteiro derretido do relógio!??? "Vai saber... quem souber me salve"!


terça-feira, 9 de agosto de 2011

Escolha saltar com os dois pés na água!


Retomando em retrospectiva

Hoje fez muito frio. Meu corpo tremeu. Vejo meus pés se moverem, as pernas mais firmes. Tenho uma sensação indescritível e muita vontade de chorar de alegria. Subo para o banho quente e coberta. Como eu queria que meus parceiros aqui tivessem a mesma evolução que tenho vivido. Por que as preces alheias não funcionam para todo mundo? Será que é porque aguento sofrer menos que eles? Visualizo fora daqui meus projetos, planos, vida. Preciso retomar o rumo. Mas as coisas têm outro sentido, outro gosto, outro valor. Começo a não me reconhecer mais no timbre das horas. Quando eu voltar pra casa não sei que língua vou falar porque tudo tem outro significado. Conheci pessoas que me mudaram para sempre. Nossas vidas bifurcaram as linhas de trem para o mesmo lugar e acabamos partilhando o mesmo vagão, na mesma viagem. Cada um com uma história guardada na mochila. Meus olhos deslizam em volta, contornam a penumbra, afagando de longe meus cúmplices. As vozes me invadem, me buscam lá no fundo.

"Perdi minha mãe e irmã e fiquei paraplégica em um acidente de carro na volta do enterro de minha avó"...

"Eu estava grávida de 7 meses...bati o carro, esperei 15 dias para o parto e só então fiz a cirurgia da coluna porque era a única chance da minha filha sair com vida...e saiu"...

"Na hora que caí do cavalo eu sentia tudo...meus braços, pernas, mas muita dor. Aí os caras vieram correndo e me colocaram em pé...depois disso não senti mais nada, mas não desmaiei"...

"Um cara me trancou, não gostei, desci do carro e discuti...voltei pra o carro e segui estrada. Lá na frente, ele me cercou e atirou no meu pescoço...ele já está solto e eu preso aqui, sem me mover"...

"Minha moto derrapou e eu entrei na parede...eu nem ia sair de casa"...

"Eu caí em uma cachoeira, estava acostumado, mas escorreguei"...

"Eu estava dormindo no banco de trás na hora do acidente, fui jogado, não tive como me defender da pancada"...

"Eu mergulhei e bati com o queixo com toda força no chão"...

“Eu estava no banco de trás. Era o único com cinto de segurança. Um carro veio pela lateral, todo mundo foi arremessado para o lado, menos eu. Ninguém teve nada grave, mas eu fiquei paraplégico”.

Tantos, muitos, outros. A enfermaria silenciava. Tudo calado nesse mundo de imagens e eu aqui, tentando editar o trecho que mudou a vida de cada um. Será que tudo isso é aleatório? Então nem adianta prevenir com atitudes sensatas? De fato, algumas coisas nos escapam mesmo quando somos cuidadosos e então a gente se consola com o clássico generalista: "era porque tinha de ser". Mas estatisticamente a prevenção dá melhores resultados. Penso em tudo que poderia ser evitado: bebida, celular, velocidade, sono e falta do cinto de segurança no volante. Confesso que me sinto uma idiota falando sobre isso porque eu sei que não vou atingir nada nem ninguém. Afinal, por que razão meu desabafo surtiria algum resultado mágico? A comunicação em massa, muito mais incisiva como suas campanhas publicitárias, repetitivas, comoventes, brutais e algumas vezes até apelativas para ver se consegue chocar ou arrancar algum efeito positivo na imprudência humana... ainda assim são infrutuosas! Imagina esse roteiro aqui, banal e saturado. Mas sou eu que estou aqui dentro escrevendo e você aí do outro lado me lendo. Estou em condição de dizer pelo menos algo com propriedade, não acha?

Não tenho a menor pretensão de mudar o mundo com essa postagem, afinal eu sou lúcida o suficiente para não formular metas tão inatingíveis assim. Mas não posso calar a urgência e meu propósito é simples: dar a você uma razão para construir atitudes que reduzam a possibilidade de alguma fatalidade que limite sua condição física. Verdade, você não tem poderes para controlar a manga que cai na cabeça, a bala perdida no seu pescoço, a tartaruga no meio de seu mergulho, a cabeça no teto do carro depois do quebra-molas inesperado, a arquibancada escorregadia, o vírus contraído no sushi ou na lagoa.

Mas pode, por exemplo, começar a obedecer às leis de trânsito, pelo menos as que preservam a vida, porque seu dinheiro não vai pagar a "multa" se o dano for em você ou em outra vítima! Pode também escolher não mergulhar de cabeça em nenhum lugar a não ser que esteja em uma competição de natação ou trampolim! Salte com os dois pés na água, é mais seguro! Faça você uma campanha com essa informação! Não precisa gritar no facebook. Fale com dois amigos, olhando no olho. Peça pra eles falarem para dois amigos. Mergulho é a segunda causa de lesão medular! Por que não vejo isso na televisão!!!? É simples, é uma frase! E evite brincadeiras na borda da piscina, não estrague justamente a festa de ninguém. Quando encontrarem alguém machucado em um acidente, chame o socorro imediatamente, e não se aventure a tocar a pessoa se não conhecer a técnica de resgate. Mesmo que a intenção seja das melhores, você pode provocar a lesão justamente quando manipula a posição da pessoa, ou durante o deslocamento, transporte ou coisa do gênero. E o pior, se só você fizer tudo certinho, ainda corre o risco de se confrontar com alguém que não leu nada disso ou até lê sobre o tema e assiste reportagens na televisão, mas no dia seguinte está de volta as estradas pensando no atraso, no compromisso ou tendo a certeza de que quando bebe torna-se ainda mais atento. Ou que tudo isso é besteira e não há de acontecer nada porque se acha o super-homem (e mal sabe como ele morreu!!). e se você ousar repassar a mensagem para alguém assim, ele pode dizer que é sensacionalismo apelativo. Engraçado... tenho que rir da tristeza, da ironia, do desolamento. Aqui estou rodeada de vida real, de pessoas que moram na esperança da ciência, na demora do nem se, nem quando. Sentados nessas cadeiras, os corações batem, a rotina segue, a vida continua. Retoma-se o prumo todos os dias, fazendo o que se pode com o que se tem. O resto, é sem escolha. Se você ainda tem sua chance de escolher, agarre-a, preserve-a e proteja sua vida. Se não tem mais essa chance de modificar a eventualidade, o dano definitivo ou temporário causado pelo "aleatório", faça algo para impedir que outros conheçam o que conhecemos. Estamos em 2011. Não sei se daqui a 5 ou 10 anos teremos contribuído para evitar que mais alguém se machuque. Na dúvida, alerte: Escolha saltar com os dois pés na água!

sábado, 6 de agosto de 2011

Ainda há tempo: não perca suas meias

Quando era pequena eu acreditava ter criado uma "teoria". Sempre que eu procurava muito um par de meias, em uma pressa desesperada - mas não era qualquer par de meias, era aquele que combinava com os tênis, com a saída e não "cabia" outro - obviamente, não o encontrava e tinha que ceder a um outro sem "graça", ainda que solidário, hiper útil, salvador até, porém tão desvalorizado por causa da situação. Pois bem...dia seguinte, era a vez de perder a chave da gaveta do escritório e dentro dela, estava o documento importantíssimo para fazer a inscrição do...digamos...vestibular, pois aquele dia seria o último prazo...ou, sei lá... a carteira do plano de saúde, pois a consulta marcada há 3 meses aconteceria em uma hora. Sabe aquela busca louca por necessidades específicas e insubstituíveis, deixando rastros do tipo "um ladrão passou por aqui!?”. Adivinhem o que eu encontro ao invés da chave? Claro!!!...é isso mesmo...o tal par de meias...o mais incrível: onde foi parar a super importância daquele mísero par de meias?

Como em um dia, ele era o meu mais precioso tesouro e no outro ele tornou-se tão insignificante? Tenho a impressão de dar importância atrasada ou adiantada a algo, mas nunca com pontualidade...ou sou pontual sim, mas não dou o valor certo a cada coisa. Parece que tudo estava tão ali ao alcance que me dei ao luxo de adiar ou mesmo ignorar. O que isso tem a ver com o que estou vivendo agora? Foi essa a pergunta que lhe veio à cabeça? (não, minha lesão medular não afetou o cérebro). Se foi esse o questionamento, será que essa pergunta veio atrasada ou cedo demais? Bom...por via das dúvidas, eis-me respondendo em considerações: não se pode deixar para última hora a importância de algo imprescindível e incontornável. Desconfie que algo importante passa despercebido enquanto "as pessoas na sala de jantar estão ocupadas em nascer e morrer". Tenho tempo agora de perceber se as pernas funcionam, o caminho com rastros imaginários por onde eu deveria ter trilhado minhas marcas. Tenho tempo suficiente para não ter pressa para nada e enxergar os detalhes mais importantes. Ainda há tempo, fique atento. Não se procrastina a importância ou o valor das pessoas. Não se adia a relevância dos fatos. Não se protela o será necessário ou útil em algum momento. É importante? Então não perca suas meias...assim você não vai precisar procurá-las quando sentir frio nos pés.

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Minha lesão parceira


Retomando em retrospectiva:

Progressões óbvias a cada treinamento. Saí das moletas e agora só bengala na mão direita. Tônus que pulsa, pernas reforçadas, o cérebro é que cansa reaprendendo a andar. O chão ficou longe nas passadas sem encontro certeiro, concentração exaustiva. A alegria esfuziante e ainda contida. Cheguei no paredão. Você já sabe o que isso significa: em breve estarei em casa. Revejo, revisito, reexisto nas cenas arrancadas de uma tristeza profunda resgatadas na lupa. E hoje meu coração pincelando de cores nos novos momentos. Eu me pego sorrindo, do nada. Afago perdido no traço do rosto. Ao fundo, vislumbro Toruk, um pouco abandonada pelo desuso recente e talvez, precoce. Tanto fez parte de mim, relação de afeto e desafeto. Pronta pra ser colo de outro. Sim, ela vai ficando no passado. Parece que para a ciência meu caso revela um avanço prematuro. Será que essa ciência ignora o valor de cada segundo dessa condição ou a devastação que dela se alastra?  Abraço o travesseiro. Toque de recolher. As luzes dos letreiros mais uma vez se deitam no assoalho. Lembro do silêncio que antecedeu a despedida de uma “Na’vi” querida que partiu de volta para terra hoje à tarde, se despindo de seu Avatar. O abraço do adeus. Tantos ainda com locomoção em rodas e eu contemplada com uma lesão medular mais que parceira. Mistura de alegria e tristeza...

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Evite!



Retomando em retrospectiva:

Quando você ouve, já foi! Não dá nem pra visualizar a “discórdia” cotidiana. “Deixa quieto”, penso. Mas vocês vieram aqui mais uma vez e depois de uma folga. Então aproveito a retomada da escuta. Sei que é necessário filtrar a intenção das pessoas. Sei que se sentem na obrigação de consolar, de dar esperanças, de expressar um sentimento de compaixão. Mas então façamos o seguinte: independente do que se pense ou acredite, vamos combinar todos aqui que existem coisas desnecessárias a dizer, principalmente porque a lesão medular não é algo exato!!

Se não souber o que dizer, não precisa falar nada e se quiser entender, mande ver. Elabore uma pergunta de maneira sensata, mas evite “sobrar” no comentário porque pode ser completamente desviado e sem noção e de quebra, machucar alguém... Segure aí o que já ouvi...

- Nossa... tão nova e tão bonita nessa cadeira de rodas... (“Quer dizer que se fosse velha e feia não teria problema?!?!?”. Evite fazer elogios atropelados!)

- Pra voltar a andar só depende de você! (“Nossa, que fácil! Por que não pensei nisso antes???? Já pensou que legal!? Gostei dessa! Não é hora de dar uma de “Roberto Benigni em A vida é bela” ou “Pollyanna, no jogo do contente”! Fui longe agora hein? A Pollyanna já deve ser avó!". Evite resolver a vida dos outros com um sonrisal – e esse, ainda existe?).

- Se você não voltar a andar é porque não tem fé (“Esse é o clássico! Será que o fato de ter a medula seccionada também não complicaria a recuperação da função medular? Eu particularmente tenho um quadro clínico que no momento me permite acreditar que posso, mas não se pode fazer disso regra geral e nem mesmo arriscar comentário sem conhecer o assunto.” Evite justamente constranger a fé alheia.)

- Minha filha teve uma lesão medular, ficou 6 meses sem andar e hoje está boazinha, andando pra todo lugar. Você também vai ficar boazinha! (“Como assim? E se ela não tivesse voltado a andar, isso ainda daria chance a alguém de voltar a andar? Se ela andou, todo mundo anda?”. Evite comparar as pessoas e suas lesões!).

- Ele está com dificuldade para voltar a andar. Pode ser coisa da cabeça dele (“A dificuldade em lidar com a limitação e dependência física mexe sim com a cabeça e o emocional...mas não provoca uma lesão imaginária na medula – a medula com gravidez imaginária!). Faça assim, se você entender bem do assunto, espere até ver todos os exames específicos ou o laudo deles. Se não entender, melhor não especular. Quando cada um diz algo diferente, é muito pior. Evite dar diagnósticos se não for o médico do paciente.

- Se o cara mexe as pernas, é porque vai voltar a andar (“Esse movimento que você percebe pode ser voluntário ou involuntário – espasticidade. Este último é uma espécie de contração involuntária capaz de mover um membro e mantê-lo contraído por longo tempo em algumas pessoas com problemas neurológicos como a lesão medular...e se não for este caso, saiba que tem gente que pedala em bicicleta estacionária adaptada e nem por isso anda.” Evite relacionar causa e consequência, este caso não é matemático).

- Como vocês "defecam" se nada funciona da cintura pra baixo? (“Sentada mesmo”...minha nossa... Evite agir como um “ser sem noção”!!!)

E a minha preferida:

- O cara era normal e depois do acidente ficou que nem vocês (“Anormais!!?”)

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Tudo novo de novo

Todos os dias, depois de meu acidente, entre 7 e 8h da manhã, eu recebo um torpedo com palavras de fé, citando a bíblia. Número desconhecido, texto sem assinatura. De antemão confesso: não tenho religião, portanto não frequento lugares que me norteassem pessoas suspeitas do envio. Depois de um mês, não me contive mais, enviei um torpedo em retorno agradecendo as palavras e querendo saber quem era o (a) interlocutor (a). Não obtive resposta além da continuação dos torpedos matutinos que muitas vezes me acordavam com seus bipes. Então não insisti. Para receber aquela reação como algo bom, preferi interpretar o silêncio como um "não importa quem eu seja, apenas saiba que penso em você todos os dias ao acordar e tenho fé que tudo ficará bem". Bom...na verdade tentei me colocar na pele dela. Antes de vir à Brasília para o tratamento, comecei a frequentar a fisioterapia na Universidade onde trabalho. Certo dia decidi aproveitar e almoçar na praça da alimentação antes de voltar para casa. Fiz o pedido e aguardei. Uma senhora que servia na lanchonete aproximou-se sorrindo:
- E então, como você está?
- Na mesma, continuando...
- Sou eu quem envia torpedo pra você.
Fiquei muda pela surpresa. Eu não a conhecia a não ser dali, rápido entre um intervalo e outro. Eu ri e disse:
- Ah...realmente eu recebo seus torpedos todos os dias...obrigada pela atenção.
- É sempre minha colega que atende você. Você sempre pede água de coco com pão de queijo né?
-Isso.
- Então...quando eu soube de sua queda, eu fiquei com uma tristeza tão grande...como se fosse alguém bem próximo, mesmo sem conhecer você direito. Eu comecei a pedir a Deus conforto pra o seu coração e pra você ficar boa logo.
Sentimento de gratidão e impotência. Na verdade queria dizer que ela não precisava mais me enviar torpedos, que eu já sabia que ela estava pensando positivo para a minha recuperação. Mas eu não tinha esse direito de recusar seu carinho...e seu gesto me comoveu, apesar de minhas convicções. Então, hoje vou enviar um torpedo pra ela, tentando traduzir as cenas do vídeo, como um tudo novo de novo...

Aceitação?

Aceitação? E por quê? Existe outra opção? A aceitação parece com o silêncio incontornável e imposto. É o percurso mais reto quando não se pode mais lutar contra as forças da natureza? Há quem diga que aceitar é desistir, um ato covarde. Mas há quem diga que aceitar é conformar-se, ato de coragem para encarar a realidade. Para mim, aceitar não se define em uma tacada. Parece mais com um acordo temporário e necessário que motiva a acordar no outro dia e ficar em suspensão na corda bamba, experimentando o equilíbrio. Não passa de uma tentativa vã e sempre por um triz, de amenizar o sofrimento fingindo esquecer o ocorrido e calando aquele desejo antigo sem dele se desfazer. É um processo cruel e lento. É admitir limitações, suas próprias e a dos outros. Aprender a conviver com ambas sem se violentar nem agredir os mais próximos. Não me dirijo apenas para quem está na minha condição, mas também para quem lida com a perda da funcionalidade, principalmente sem fins financeiros. Esses que são nossas pernas, nossos braços e disponibilizam-se por não termos mais autonomia nem independência. Eles não têm obrigação de adivinhar o que queremos, como queremos e quando queremos. Se dizemos que nos tiram a privacidade, neste sentido é certo que damos o troco tirando o tempo que eles têm pra viver a própria vida. Então não é justo acusá-los de nada. Enquanto esbravejamos e "amaldiçoamos" o mundo, culpando o destino, o acaso, Deus, ou sei lá mais quem por algo perdido, essas pessoas estão provendo alimentação, documentos, agendando exames, consultas...empurram nossas cadeiras, nos levam nos braços, nos dão banho, nos vestem, aguentam nossas palavras ingratas, nossos gestos de desespero. Elas tentam nos confortar com palavras inocentes, muitas vezes sem fundamentos científicos, mas todas carregadas de esperança e bondade. E nessas horas, melhor evitar dizer palavras que você não pode mais retirar. Só lembrar de algumas que você já ouviu e que nunca se foram. Eu só sei que esses seres estão presentes, velam sua dor, em silêncio e não se importam em quanto você está diminuído.

A dança dos anônimos



Foi assim...

Foi assim...eu já havia ultrapassado o estágio do esboço de contração, vencido rolinhos embaixo dos joelhos e tornozelos, sentada no tablado, dorso contra encosto. Já havia deslocado theraband de todas as cores, deitada na cama do ginásio, tracionando músculos acionadores, estabilizadores e desaceleradores do movimento da marcha. Também já havia pedalado, ainda que minhas pernas estivessem amarradas dentro de botas instaladas nos pedais. Também já havia ficado em pé com os joelhos bloqueados na mesa mecânica, trabalhado equilíbrio de tronco, com e sem elevação de braços, ainda que este fosse meu ponto fraco até então. Sentia-me segura o suficiente para confiar na harmonia e compensação entre as cadeias musculares. De fato, faltava-me a coordenação de tudo em uma sequência. Então meu terapeuta funcional falou a frase mágica:

- Vá para as paralelas.

As barras paralelas representam uma espécie de "corredor da esperança"...um túnel de aproximadamente três metros para percorrer a pé e tem um espelho do final. Parece uma saída para esbarrar com quem a gente é. Cabe direitinho, sem mentir, a revelação "do que te agrada e o que te dói". É onde você dá a cara a tapa, tira a prova dos nove, faz o acerto de contas...Mas,  "é preciso estar tranquilo pra se olhar dentro do espelho, refletir, o que é... seja você quem for"...enfrentar-se é necessário, mas sem fingir e sem autossabotagem...teria chegado a hora? Estaria eu pronta?

- Sério?

Duvidei de mim. Ele fez sim com a cabeça. Toquei Toruk até a borda da entrada das barras. Travei suas rodas. Ele prendeu minha cintura em um cinto com alças largas, segurou-as firme na lateral, pôs-me de pé e não mais me soltou. Apoiei os braços nas barras, estabilizei o tronco...olhar fixo no chão a frente...medo...

"O medo é uma linha que separa o mundo

            O medo é uma casa aonde ninguém vai

                      O medo é como um laço que se aperta em nós

                                O medo é uma força que não me deixa andar"

Balbuciei suor e tontura...meu sangue aquecendo. Vapor ardendo. Os sons emudeceram-se em volta. Slow motion...sua voz me recomendava algo... eu entorpecida de emoção...

- Pernas semifletidas, tente sustentar o corpo o máximo sem os braços.

Ele checava a potência da força. Lancei-me..."por favor não me traiam, segurem-me...não me larguem logo agora"...apelo arrancado do fundo... muito tremor...inevitável... eu me inundava de vida e movimento...com a ajuda dele, avancei a passos curtos, lentos e valentes até a ponta e voltei. Toruk me acolheu no colo...nada falhou.  Respiração alterada...Gritei alto por dentro...por fora merecidas lágrimas sem pudor...silêncio longo...profundo... mistura de respeito e cumplicidade...

- Pode ir.

Voei dali com Toruk em um pranto bem esperado...minha alegria em segredo...

O contrário do alívio

Depois de duas semanas de lesão, ainda em Natal, recordei-me da rotina de antes: correria, falta de tempo, correção de provas, preparação de aulas, atendimento a alunos a cada passo no corredor da universidade. Intervalos, só nos deslocamentos de um lugar a outro. Adormeci em meio a tantas tarefas tão familiares abandonadas, disputando vaga entre os papéis imaginários sobre a cama. Acordei retorcida e sobressaltada, com a adrenalina queimando o espanto, temperatura explodindo!! "O despertador emperrou, estou atrasada para a aula!!". Antecipo-me com a intenção de retirar-me da cama sem hesitação. O empuxo não decola, minhas pernas desobedecem sem tração. O colchão me gruda e por alguns milésimos de segundos recorro a insistência confusa, atordoada de mover-me. Metade ainda dentro do sono, metade ali, enterrada dentro de um jarro, acenando as hastes e pedindo socorro. Minha testa contrai-se, os olhos apertam o entendimento se rendendo a uma espécie de contrário do alívio. Os lábios imprensados na explicação. Sensação de cair em si. Realidade me buscando de volta, me devolvendo ao colchão de onde sequer removi-me. Despeço-me do gosto nostálgico do sonho para despertar em um pesadelo.

A quoi bon?

A dança lenta dos biombos abraçando as camas intercalando as intervenções privadas. O baunilha do céu confunde trazendo ou levando o dia. Acordamos e adormecemos no meio de um oceano. São 26 sobreviventes de naufrágios diferentes se encontram na mesma ilha de Pandora, olhando o mesmo teto e calando a fala. Ouvimos os ruídos incessantes de tudo em volta. Os chamados se alternam a noite inteira. Meu corpo cansado padece em minha jangada a espera de um resgate. O dia encolhe a fronha, interpõe imagens de dentro e de fora do mundo. Desligo os olhos mais uma vez, tudo arde em volta. Olhares vagos distantes..."os nós que arrebentam, os fios que enlaçam, vontade entre alegria e dor". Antecipo a rotina...um centímetro a mais de flexão, um segundo a mais de resistência, alguns gramas a mais do deslocamento ou na densidade de sustentação. "À quoi bon?"... ("de que adianta"..."para que serve"). A quoi bon mexer minimamente os braços se não se consegue tocar a cadeira? A quoi bon mexer a mão se não se consegue segurar o garfo? A quoi bon segurar o garfo se não consigo fisgar a comida? A quoi bon fisgar a comida se não se consegue levá-la até a boca? A quoi bon mexer as pernas se não consigo andar? A quoi bon existir se não posso viver?

domingo, 17 de julho de 2011

Já dá pra calçar umas havaianas

- Tá sabendo do chá de cadeira que fizeram na ala B para comprar uma cadeira de rodas pra uma menina?

- Meu abacaxi não está cortado em rodelas, acho que se enganaram e mandaram em pedacinhos ("abacaxi de tetra"), quem precisa trocar comigo?

- O professor chegou no ginásio tirando onda ontem, dizendo que a aula de ballet estava marcada para as 10h. Tenho que comprar minha sapatilha!

- Aprendi a empinar sem cordinha, e só não consigo subir o degrau de 15cm.

- Vem que eu te dou uma rasteira!

- Aqui não pode pedir nada emprestado para não passar bactérias para o outro.

- Solta o braço, tá tocando a cadeira quem nem DJ!

- Lá no lago tem aula de dança, basket e canoagem. Mas parece que tem também desfile de moda.

- Pow...beterraba só pode ser bom pra medula... tem todo santo dia!

- Você está no grupo do passeio para o zoológico?

- Você viu que aqui dentro tem uma tela de cinema?

- A água da piscina é fria?

- Tá treinando fechadura com o adaptador de mão.

- Subir rampa é mais cansativo, mas descer é mais perigoso.

- Caraca, segunda-feira é o dia nacional da flatulência! Fala sério! O que vocês comem no final de semana!?

- Da barra com órtese para o andador, depois pra bengala e de lá para esteira. Tomara que eu consiga!

- Sonhei que todo mundo era "para" e eu era astro de novela.

- Tem diferença entre bengala e moleta?

- Muito ruim tomar banho sentado.

- Nunca mais tinha sentido dor muscular.

- Tive espasmo tão forte que caí da cama ontem.

- Pode ir se trocar seu short tá molhado. A sonda deve ter saído.

- O moleque não tem nem braço completo e nem perna. Ganha de todo mundo lá, faz tudo!

- Eu desmaio quando fico de pé na prancha mecânica.

- Deixei o rastro no chão, meu saco vasou.

- 62 dias deitado de bruços, dá medo de se sentar.

- Depois de meu acidente, todo mundo dizia que eu voltaria a andar e que Deus ia prover. Faz 11 anos já.

- Odeio quando os outros dizem que eu vou voltar a andar.

- Agora eu sei quem é mesmo meu amigo.

- Tô louco pra tomar uma coca cola.

- Logo que você se acidenta, todo mundo quer ver você pra conferir. Depois que você não é mais novidade, fica sozinho mesmo, brigando pra vestir a camisa.

E essa foi minha:

- Meus pés estão mexendo e agora já dá pra calçar umas havaianas!





Dialeto de Pandora

"PC": não tem nada a ver com computador, é paralisia cerebral;

"LM": não é produto para lavajato e sim, lesão medular;

"Vai fazer o "cat"?": não tem nada a ver com o gato. É simplesmente fazer cateterismo vesical: introduzir uma sonda na uretra para fazer escoar a urina. Pode ser assistido (com ajuda de alguém) ou autocateterismo (sozinho);

"Vai te catar?": não é procurar piolho em si, também não é "vá procurar sua turma". É também fazer o cateterismo vesical;

"Tá fazendo o catecismo?": Fazer cateterismo mais uma vez.

"Já tem seu kitcat?": não é ter um chocolate e sim um conjunto de saco coletor, sonda uretral, sabão neutro, lubrificante hidrossolúvel e gaze;

"Chegou no "paredão"? Em "Pandora" isto não significa que você vai ser fuzilado ou eliminado, mas sim, imaginar que sua alta se aproxima já que sua cama foi deslocada para perto da parede dos fundos se distanciando do posto de enfermagem (requerendo menor atenção);

"Carregando a bengala": Não é levar a bengala de alguém. Significa "andando tão bem que não precisa da bengala".

"Tá de preparo": tá fazendo dieta laxante de três dias para fazer uma ultra.

"Já sabe tocar a cadeira?": Quem não sabe tocar uma cadeira, não é? Mas isto significa conduzir uma cadeira de rodas. Vamos combinar: é bem melhor que "andar" de cadeira de rodas, né? Dannnnnn!

"Estar enfezada (o): não é estar com raiva, muito nervoso ou bravo ou coisa parecida...é estar "em fezada"...entende? Pense em fezes... Não queira que eu descreva mais que isso!

sábado, 16 de julho de 2011

Para quem aguentar "ouvir"...

De antemão alerto: o texto de hoje não se trata de um manual de instruções. Ninguém é obrigado a conhecer as entranhas do problema, mas se você veio me ler, algum interesse tem e por isso mesmo vai levar consigo o recado. Não vou me eximir em explicar, nem você vai se constranger em me "ouvir", ainda que o que eu tenha a dizer seja redundante ou não totalmente novidade. Não vou encorajar dizendo que o post de hoje é engraçado ou emocionante. Nada disso. Não vou enganar a você: ele é cru, porém, vital! Ele pretende desfazer uma série de equívocos que frustram, constrangem e desintegram a trajetória de quem precisa se reabilitar e de quem está acompanhando o processo. Se você é humano e vive em sociedade, isso concerne a você também! Portanto, sente e "ouça" os esclarecimentos sobre alguns equívocos que dizem por aí:

1. Pandora "não faz ninguém voltar a andar". Isso faz parte de uma lenda que a própria equipe que cuida dos Na'vis daqui faz questão de desfazer. Isto porque este reino foi concebido para tornar funcionais e valorizadas as capacidades que nos restam e a partir delas devolver dignidade, respeito e qualidade a uma vida adaptada. Obviamente o centro é composto de uma infraestrutura sem precedentes e um grupo de profissionais de excelente reputação... mas deixam bem claro desde a primeira consulta: reabilitar para as capacidades atuais sem mais expectativas. Por quê?

2. Eles defendem o propósito de que a recuperação da função medular depende da "espontaneidade" da própria medula em voltar a reagir. Portanto, quando acontece de um paciente retomar contrações voluntárias como é meu caso, eles atribuem o resultado ao despertar da própria medula e não ao trabalho de manuntenção osteomioarticular. Lógico que o trabalho para manter o organismo em atividade por meio do controle, higiene, exercícios físicos e demais cuidados é importante para dar condições de não perder a funcionalidade caso esse despertar aconteça.

3. Eles ou qualquer teoria sobre a neurologia entendem a medula como um mistério por ser uma extensão do cérebro. Ela é como um "caule" que parte do cérebro abrigada em um canal que passa dentro da coluna vertebral indo aproximadamente até o final da região torácica e início da lombar. Dela partem os nervos por onde levam e trazem mensagens enviadas do, e para o cérebro. Como exemplo, esses comandos atingem as funções motoras (mobilidade), sensitivas (sensações de tato, temperatura...), circulatórias (distribuição do sangue, nutrientes e oxigênio), vesicais (urina), intestinais (fezes) e sexuais (atividade sexual).

4. A lesão medular se caracteriza por um dano causado a medula, seja de forma traumática (acidente) ou não traumática (vírus ou tumores). Quando isto ocorre, há forçosamente uma interrupção na transmissão dos comandos cerebrais e partes do funcionamento de seu organismo abaixo da lesão podem estar comprometidas. O grau do comprometimento dessas funções vai depender não somente do nível da lesão (em que altura da medula se situa o dano) mas também da intensidade de sua extensão (comprometimento de todo o diâmetro da medula ou parte dele). "O quanto mudam essas funções depende de onde e do quanto a medula foi atingida". Isto pode ser de forma total (lesão completa) comprometendo qualquer movimento voluntário abaixo do nível da lesão; ou parcial (lesão incompleta) podendo prover movimentos voluntários ao longo da recuperação. Pode ocorrer lesão não somente por fraturas de vértebra, mas também perfuração, esmagamento ou choques/pancadas com formação de edema, como foi meu caso. As pessoas que sofrem lesões situadas na região cervical (pescoço) são classificadas como tetraplégicas, e da região torácica para baixo, paraplégicas. Os tetraplégicos em teoria são mais dependentes que os paraplégicos, mas como disse, a intensidade da lesão também determina a possibilidade das capacidades. Há tetraplégicos que ficam em pé, por exemplo, comem e fazem esportes adaptados, mesmo com outras limitações.

5. Da mesma forma não há regras para o comprometimento sexual. Alguns não são afetados e para outros é necessário a descoberta de novos estímulos para retomar essas funções. Portanto, pode ser um engano olhar os "plégicos" como se eles não sentissem prazer. Mas também isso pouco importa, sabe por quê? Porque na condição de para ou tetraplegia, a escala de valores da natureza humana se ajusta de uma maneira particular!  Perguntem a um deles se pudessem escolher, o que seria prioritário, assegurar a função sexual como antes ou a função vesical ou intestinal? É praticamente unânime a resposta!! Independentemente do nível de "garanhonismo" do passado, a função sexual ou até a marcha ficaria em segundo plano. Afinal passar a vida toda introduzindo uma sonda na uretra a cada 4 ou 6 horas para escoar a urina (cateterismo vesical), ou transitar com sonda e saco coletor (sonda de demora), ou ainda fazer manobras para eliminações fecais, requer uma aceitação imposta e uma organização extrema. E isso não é nada confortável, sem falar no risco de vazamentos. É meu caro, é sem escolha. Bexiga e intestino cheios e distendidos podem levar a problemas sérios como a insuficiência renal ou impactação fecal. São casos de emergência médica.

6. Ainda não terminei: o lesado medular também corre o risco de abrir úlceras por pressão dos ossos na pele (escaras). Isto acontece porque o desuso do aparelho locomotor acarreta perda de massa muscular expondo mais os ossos ao contato prolongado com a superfície que nos sustenta, quando mantemos o corpo na mesma posição. Além disso, em algumas lesões há risco de aparecimento de movimentos involuntários de membros (espasmos) que podem causar quedas entre outras consequências. Portanto quando virem os "plégicos" moverem partes do corpo que são inertes, não pensem que é algum espírito habitando um corpo, um encosto, um milagre ou fingimento.  Para isso é necessário medicação para diminuir os espasmos. Além desse tipo de tratamento, existe a aplicação de botox para relaxamento dos nervos. Já para evitar trombose (provocada por problemas circulatórios), tomamos injeção diária ou usamos meias, digamos, especiais. Temos ainda uma alimentação naturalmente laxante, bebemos muita água, utilizamos manobras para facilitar o movimento intestinal ou outros estimuladores, e ainda fazemos exercícios físicos e cuidamos da hidratação da pele com cremes.

Entendeu por que os heróis sem medalhas merecem mais respeito e prioridade?

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Quantos dedos então faltam?

Já tá perto? Vai demorar muito? Quando eu vou crescer? Com o "tempo" as perguntas mudam, mas ainda assim ele permanece pano de fundo. Como se mede tudo isso? Pela intensidade do que se vive? Em segundos, dias, anos? E quantos segundos duram um segundo? Você sabe?
Não, não...eu não me enganei nem você leu errado. É isso mesmo. O encontro pode ser curto e ainda assim eterno. E pode ser longo e completamente inexpressivo. De abril pra cá foram 3 meses de intensa busca, lenta espera, dúvidas, confrontos, estimativas, julgamentos e transformações.

O nunca e o sempre têm a mesma duração ainda que em direções contrárias. Será que vale a pena conhecê-los? Como diria uma voz amiga: "nada é tão longo que (não) seja definitivo ou imutável. Esse funil à conta-gotas que não preenche, e que tortura. Maltrata porque nele a expectativa frustra, ainda que a esperança branda amenize.

Remando sobre rodas sem bússola e sem endereço de destino. Aliás, que destino? Como aquele soldado do livro do Buzzati que parte à deriva com expectativas para ser lotado em um antigo forte somente com o dever de velar o deserto. O tempo conta diferente para quem é livre? O que diria um "presidiário cumprindo sentença"? Um refugiado encarando o exílio? Um refém enfrentando um sequestro? O tempo parece ser aquilo que a liberdade sequer vê passar. Ignora qualquer esperança com desdém, petulância e autossuficiência.

Para saber o que é o tempo, seria necessário ler o diário de um faroleiro do atol, ouvir com profundidade seu interesse pelo cotidiano, sentir o tédio murmurar relíquias, aprender a reter do sussurro do ócio, os detalhes que não se visualiza. O tempo atrasa a covardia e adianta os impulsos...ele paira levando de volta ou trazendo pra longe..."tem volta e te cobra... o fim é uma forma de recomeçar". Ele fere, dissolve e aborta. Só não para e não cura. Definitivamente, não se iluda, ele não cura...conheço muitos "viventes bem vividos" ainda bem enfermos.

Porém, o tempo prescreve, e por isso alivia...se despede de mim e de você sem avisar, amargando remorsos pelos deslizes e desfalques ou rendendo leveza pela consciência e imunidade. Ele desprende, decola e retoma "marcando o passo" em sua arritmia. Lembro que quando pequeno, meu irmão caçula me perguntou quantos dedos das mãos ele deveria "dormir" até que eu voltasse de onde morava. Demorei tanto no retorno que ele preferiu dar meu nome a uma plantinha que ele regava todos os dias esperando minha volta incerta. Não sei dizer quantos dedos contariam seu sono, nem saberia descrever o vigor daquela plantinha crescendo sob sua vigilância. Eu só sei que o tempo dedicado a mim, me fez permanecer viva dentro dele ainda que distante. Quantos dedos então faltam para fechar esse parêntese?




terça-feira, 12 de julho de 2011

As imagens falam por mim


A semana promete!! Energia, vontade e ânsia!! O dia desliga cedo, cansaço bom. A rotina viva, girando sem dono, ponteiro a fora. Mundo por favor não pare, não quero descer. Estremeço na força, concentro na precisão. Sem mais palavras...as imagens falam por mim.

Arquibancada chegando!

Exame ok. Escapei da faca! Bom? Espero que sim, pois o canal medular foi invadido apesar da medula permanecer intacta.

- "Evitar esportes de contato ou impacto". ("Como assim? Ah...entendi...só tênis de mesa, snooker, pôquer e xadrez, né? E definitivamente tenho que largar meu boxe!!! O que aliás não deve ser muito difícil já que eu nunca lutei...").

- O Tartaruga já teve alta, mas ele estava aqui ("Tartaruga? Esse cara só pode tocar a cadeira muito lentamente pra ter esse apelido).

- Por que Tartaruga? – não resisti!

- Então, neguinho não se ferra com história de mergulho em águas rasas, né? – disse meu interlocutor.

- Sim, é até a segunda causa de lesão medular...mas e daí? – disse eu demonstrando todo meu conhecimento na “área”.

- Daí, o dele foi em águas profundas, mas aí passou uma tartaruga bem na hora e ele tascou a cabeça no casco dela. Resultado: lesão alta, tetra!

- Sério!!!!? ("Não acredito nisssssssssssssso!! Caraca, não é possível!!!!").

- Pior é que é verdade! – disse ele com um certo ar de quem pensa "Pois é, quem consegue prevenir uma coisa dessas!!?

- Muito azar...minha nossa! – disse eu sem “realizar” o fato!

- Pior foi o cara da manga – completou em seguida. ("Humrum...peraí, cara da manga? Como assim!!!? Engoliu o caroço? Teve falta de ar seguida de parada respiratória que acarretou paralisia cerebral e comprometeu a medula!!?")

- O que tem ele? – não resisti novamente!

- Diz que uma manga caiu na cabeça dele. Resultaaaaaaaaado: Lesão alta, tetra!

- Não, aí você tá brincando né? ("Surreal! Só pode ter sido uma manga rosa!!! Uma manguita jamais seria tão maligna!!!!").

- Tô nada, é sério! Parece mentira, mas não é... (Pensei "E eu então o que sou? No mínimo devo ser "Arquibancada!!!”, né? Tipo: olha quem vem ali, arquibancada chegando!").

domingo, 10 de julho de 2011

O ruim que pode piorar ou a esperança que morre por último?

- Seus sinais clínicos indicam uma lesão na T7 mesmo que o choque medular tenha sido na T11. Tivemos um outro achado na ressonância que pode acarretar um procedimento cirúrgico na coluna cervical: você tem um estreitamento do canal medular na região cervical.
- Mas a lesão não foi na coluna torácica?
- Sim. Acreditamos que o primeiro impacto foi o mais forte localizado na região torácica. Porém, houve um segundo choque, de sua cabeça contra o corrimão. Este provocou desmaio e no retorno a consciência, você tinha perdido a sensibilidade e os movimentos dos membros superiores, não foi isso?
- Sim.
- Então, apesar de você ter recobrado essas funções em poucos dias, acredita-se que tenha havido um impacto por deslizamento de vértebras ou um agravamento de suas hérnias no momento do choque. Elas estão bem próximas da medula e isto pode provocar uma lesão. Precisamos realizar um exame para estimar a necessidade de realizar uma cirurgia nos próximos dias.
- Mas esse estreitamento foi causado pelo impacto?
- O estreitamento não, é de sua constituição. Existem alguns casos na população geral e você está inserida nesse grupo de exceção. 
- É...mas eu não sinto formigamento e recobrei as forças. Meu médico em Natal já havia falado sobre a necessidade de fazer essa cirurgia futuramente.
- Pois é, mas nós vamos investigar a necessidade da urgência dessa intervenção como medida de uma cirurgia preventiva por meio de um exame na eletromiografia, o Potencial evocado motor.
- É o resultado dele que decide?
- Exato.
- É realmente necessário?
- Sim. Negligenciar essa possibilidade de lesão seria se expor ao risco de uma tetraparesia que levaria o comprometimento sensitivo/motor de membros superiores ao invés de somente os inferiores como na paraplegia atual.
- Sei...traduzindo, levaria a tetraplegia.
- Pode-se dizer que sim, ou a um estado semelhante.
- E essa cirurgia não melhoraria em nada meu quadro atual, né?
- Não, não é esse o objetivo e sim o de prevenir o risco de outra lesão mais incisiva na região cervical.
- Sei... 
- Alguma dúvida?
- Sim, quais são os riscos?
- Riscos de qualquer cirurgia, porém trata-se de um procedimento preventivo e teoricamente sem complicações agravantes, já que não se trata de fraturas com fragmentos ósseos ou edema.
- Se o resultado afastar a possibilidade da realização da cirurgia, qual será minha previsão de alta?
- Sua alta está programada para o dia 2/08 caso não haja cirurgia. E também vai depender de sua evolução aqui. Pode ser que seja antecipada ou prolongada. É uma decisão para ser tomada em equipe. Ainda é cedo para prever a alta, visto que não descartamos ainda a realização da cirurgia.
- Tá...tá bom...
- Se surgir alguma dúvida não hesite em nos procurar, estaremos a disposição.
- Tudo bem...obrigada.
Eles se afastaram...eu toquei a cadeira pra longe...tentando filtrar as informações. Dois colegas passaram:
- Tô sabendo que você mexeu o pé, né? O que eles falaram com você?
Respondi pra eles em resumo sobre a novidade bem desanimada. Um deles rebateu:
- É companheira...não há nada de ruim que não possa piorar. Mas não é nada certo. Aliás, na vida só há duas certezas: a morte e o show do Roberto Carlos no final do ano. E que nossas sogras nunca se chamem esperança, porque ela é a última que morre.
Tive que rir...aqui a realidade é árdua...mas sua crueldade é partilhada...cumplicidade de sofrimentos.