sábado, 16 de julho de 2011

Para quem aguentar "ouvir"...

De antemão alerto: o texto de hoje não se trata de um manual de instruções. Ninguém é obrigado a conhecer as entranhas do problema, mas se você veio me ler, algum interesse tem e por isso mesmo vai levar consigo o recado. Não vou me eximir em explicar, nem você vai se constranger em me "ouvir", ainda que o que eu tenha a dizer seja redundante ou não totalmente novidade. Não vou encorajar dizendo que o post de hoje é engraçado ou emocionante. Nada disso. Não vou enganar a você: ele é cru, porém, vital! Ele pretende desfazer uma série de equívocos que frustram, constrangem e desintegram a trajetória de quem precisa se reabilitar e de quem está acompanhando o processo. Se você é humano e vive em sociedade, isso concerne a você também! Portanto, sente e "ouça" os esclarecimentos sobre alguns equívocos que dizem por aí:

1. Pandora "não faz ninguém voltar a andar". Isso faz parte de uma lenda que a própria equipe que cuida dos Na'vis daqui faz questão de desfazer. Isto porque este reino foi concebido para tornar funcionais e valorizadas as capacidades que nos restam e a partir delas devolver dignidade, respeito e qualidade a uma vida adaptada. Obviamente o centro é composto de uma infraestrutura sem precedentes e um grupo de profissionais de excelente reputação... mas deixam bem claro desde a primeira consulta: reabilitar para as capacidades atuais sem mais expectativas. Por quê?

2. Eles defendem o propósito de que a recuperação da função medular depende da "espontaneidade" da própria medula em voltar a reagir. Portanto, quando acontece de um paciente retomar contrações voluntárias como é meu caso, eles atribuem o resultado ao despertar da própria medula e não ao trabalho de manuntenção osteomioarticular. Lógico que o trabalho para manter o organismo em atividade por meio do controle, higiene, exercícios físicos e demais cuidados é importante para dar condições de não perder a funcionalidade caso esse despertar aconteça.

3. Eles ou qualquer teoria sobre a neurologia entendem a medula como um mistério por ser uma extensão do cérebro. Ela é como um "caule" que parte do cérebro abrigada em um canal que passa dentro da coluna vertebral indo aproximadamente até o final da região torácica e início da lombar. Dela partem os nervos por onde levam e trazem mensagens enviadas do, e para o cérebro. Como exemplo, esses comandos atingem as funções motoras (mobilidade), sensitivas (sensações de tato, temperatura...), circulatórias (distribuição do sangue, nutrientes e oxigênio), vesicais (urina), intestinais (fezes) e sexuais (atividade sexual).

4. A lesão medular se caracteriza por um dano causado a medula, seja de forma traumática (acidente) ou não traumática (vírus ou tumores). Quando isto ocorre, há forçosamente uma interrupção na transmissão dos comandos cerebrais e partes do funcionamento de seu organismo abaixo da lesão podem estar comprometidas. O grau do comprometimento dessas funções vai depender não somente do nível da lesão (em que altura da medula se situa o dano) mas também da intensidade de sua extensão (comprometimento de todo o diâmetro da medula ou parte dele). "O quanto mudam essas funções depende de onde e do quanto a medula foi atingida". Isto pode ser de forma total (lesão completa) comprometendo qualquer movimento voluntário abaixo do nível da lesão; ou parcial (lesão incompleta) podendo prover movimentos voluntários ao longo da recuperação. Pode ocorrer lesão não somente por fraturas de vértebra, mas também perfuração, esmagamento ou choques/pancadas com formação de edema, como foi meu caso. As pessoas que sofrem lesões situadas na região cervical (pescoço) são classificadas como tetraplégicas, e da região torácica para baixo, paraplégicas. Os tetraplégicos em teoria são mais dependentes que os paraplégicos, mas como disse, a intensidade da lesão também determina a possibilidade das capacidades. Há tetraplégicos que ficam em pé, por exemplo, comem e fazem esportes adaptados, mesmo com outras limitações.

5. Da mesma forma não há regras para o comprometimento sexual. Alguns não são afetados e para outros é necessário a descoberta de novos estímulos para retomar essas funções. Portanto, pode ser um engano olhar os "plégicos" como se eles não sentissem prazer. Mas também isso pouco importa, sabe por quê? Porque na condição de para ou tetraplegia, a escala de valores da natureza humana se ajusta de uma maneira particular!  Perguntem a um deles se pudessem escolher, o que seria prioritário, assegurar a função sexual como antes ou a função vesical ou intestinal? É praticamente unânime a resposta!! Independentemente do nível de "garanhonismo" do passado, a função sexual ou até a marcha ficaria em segundo plano. Afinal passar a vida toda introduzindo uma sonda na uretra a cada 4 ou 6 horas para escoar a urina (cateterismo vesical), ou transitar com sonda e saco coletor (sonda de demora), ou ainda fazer manobras para eliminações fecais, requer uma aceitação imposta e uma organização extrema. E isso não é nada confortável, sem falar no risco de vazamentos. É meu caro, é sem escolha. Bexiga e intestino cheios e distendidos podem levar a problemas sérios como a insuficiência renal ou impactação fecal. São casos de emergência médica.

6. Ainda não terminei: o lesado medular também corre o risco de abrir úlceras por pressão dos ossos na pele (escaras). Isto acontece porque o desuso do aparelho locomotor acarreta perda de massa muscular expondo mais os ossos ao contato prolongado com a superfície que nos sustenta, quando mantemos o corpo na mesma posição. Além disso, em algumas lesões há risco de aparecimento de movimentos involuntários de membros (espasmos) que podem causar quedas entre outras consequências. Portanto quando virem os "plégicos" moverem partes do corpo que são inertes, não pensem que é algum espírito habitando um corpo, um encosto, um milagre ou fingimento.  Para isso é necessário medicação para diminuir os espasmos. Além desse tipo de tratamento, existe a aplicação de botox para relaxamento dos nervos. Já para evitar trombose (provocada por problemas circulatórios), tomamos injeção diária ou usamos meias, digamos, especiais. Temos ainda uma alimentação naturalmente laxante, bebemos muita água, utilizamos manobras para facilitar o movimento intestinal ou outros estimuladores, e ainda fazemos exercícios físicos e cuidamos da hidratação da pele com cremes.

Entendeu por que os heróis sem medalhas merecem mais respeito e prioridade?

8 comentários:

  1. rs...Tassos...só você mesmo para ler toda essa dureza! Beijo.

    ResponderExcluir
  2. Tb leio!só que não venho marcar ponto!

    Hunf!

    :p

    ResponderExcluir
  3. Mons, é verdade que antes de te encontrar não conseguia alcançar metade da questão. Fica tudo no plano teórico... impressionante como minha visão da realidade mudou!
    Beijos, beijos, beijos e muita saudade!!
    (me liga quando quiser! fico sem saber se ligo ou não...)

    ResponderExcluir
  4. Eu também li, Viu? rsrsrsrs. É dureza mesmo!! São verdadeiros hérois.Bjão

    ResponderExcluir
  5. Ler e ouvir você é sempre uma fonte de novos conhecimentos (mesmo para quem acreditava já dominar o tema). Merci mon grand maître

    ResponderExcluir
  6. Dani: rsrs...marque ponto então! bjo
    Mons: dureza que precisa ser sentida...assim vai o espírito da cidadania.
    Renata: bom que você partilha...beijo pra você.
    Anônimo: Na verdade quis resumir um pouco o "conjunto" do problema. E esse francês? Quem será você? rs

    ResponderExcluir
  7. Tem razão, não lemos, ouvimos.
    Como driblar um sistema organizado e imposto?
    Sorte pero non mucho organizado a ponto de impedir a entrada de uma nova luz ou ar, mesmo rarefeito ou furtivo.
    Você vai conseguir, o olhar determinado de alguém determinado não mente jamais.

    ResponderExcluir