O óbvio prega peças...leituras,
vozes, concentração, clique de telas, dedos correndo nos teclados...prazos,
datas, agenda, calendário...tenho que cumprir...a rotina voltou com força para
os meus braços e eis que é muito bem-vinda... Consegui alcançar o trem da
história que havia partido sem mim. Tudo mudado...alguma coisa tomou outro tom,
estranha linguagem, obsoleta tradução. Os sons precisos se amortecem longínquos
vez em quando, dando lugar a pensamentos, sentimento de distância, recuo. A
vida não se importa quando nos sentamos na borda para refazer o fôlego porque ela
segue impiedosa, voraz, apressada. Fui ali, encolhi-me em uma bolha e quando
voltei, retomei a sequência, perdi o fio da meada... sem entender o que
aconteceu nos capítulos estagnados de minha vida. Uma linha tênue, rasa, reta,
morou na lacuna como um traçado morto, sem ação nem vida. Juntei o amontoado de
papéis sobre a mesa, encaixei os livros na mochila e já nem ouvia mais os
recados, os afazeres. Meu olhar vago no horizonte curto. Lembrei do clima da
volta do Noland interpretado pelo Tom Hanks que foi o náufrago solitário vítima
de um acidente aéreo, resgatado depois de 4 anos, confinado naquela ilha deserta.
Tudo tão sem significado, tudo tão diferente de antes...antes do acidente ele
só pensava em bater recordes vencendo o tempo...quase isso em mim...irônico,
mais uma vez...sigo, me despeço, digo "ok" para todos os afazeres,
compromissos, obrigações. Saio sem pressa, andando por aquele lugar tão
familiar e ao mesmo tempo tão modificado. Cumprimento alguns passantes como se revisitasse
um set de filmagem. Atravesso a catraca da saída, visualizo na frente do prédio
a vaga para portadores de deficiente físico repleta de motos..."perdoe
porque eles não sabem o que fazem?". Espero sinceramente que eles não
saibam nunca um dia o que significa ter que ocupar aquele lugar por direito... "conquistar"
aquele "privilégio". Mas não resisti e falei para o motociclista que
estava chegando:
- Por favor, você pode não
estacionar aqui. Mas pode me ajudar a deslocar as outras motos?
- Mas é jogo rápido.
- Eu sei disso... a vida da gente
pode mudar bem rápido mesmo. De uma hora para a outra a gente guia uma moto e
depois vai para uma cadeira de rodas.
- Vixi que trágico. – disse ele
rindo e continuou:
- É só pra pagar uma conta, tô
atrasado e se estacionar longe, já viu, né? Vou ter que vir andando e gasta
mais tempo. Mas se chegar alguém aí você dá um grito e eu venho tirar a moto.
"Se eu tiver que vir andando"...nem
acreditei no que ouvi...um ensaio sobre a cegueira novamente...a civilização a
beira de um colapso...se ele não quer perder tempo fazendo aquilo que pode
fazer, imagina o tempo e o esforço que perde alguém que não tem escolha,
estaciona longe e vem tocando a cadeira de rodas ladeira acima porque ele não
pode chegar atrasado? Retomei a fala:
- Posso fazer uma pergunta?
- Diga. – disse ele, já fora da
moto.
- Se tivesse um guarda de
trânsito aqui, você se importaria de chegar atrasado?
- Aí já é uma questão de multa,
não sou otário e ia me virar. Por quê? Vai chamar o guarda, é?
- Não, não... era só para saber
mesmo o que tem valor na sua vida. Obrigada.
Meu mundo paralelo gritando...saí
andando sem olhar para trás...a vida arde.