De antemão alerto: o texto de
hoje não se trata de um manual de instruções. Ninguém é obrigado a conhecer as
entranhas do problema, mas se você veio me ler, algum interesse tem e por isso
mesmo vai levar consigo o recado. Não vou me eximir em explicar, nem você vai
se constranger em me "ouvir", ainda que o que eu tenha a dizer seja redundante
ou não totalmente novidade. Não vou encorajar dizendo que o post de hoje é engraçado
ou emocionante. Nada disso. Não vou enganar a você: ele é cru, porém, vital!
Ele pretende desfazer uma série de equívocos que frustram, constrangem e desintegram
a trajetória de quem precisa se reabilitar e de quem está acompanhando o
processo. Se você é humano e vive em sociedade, isso concerne a você também!
Portanto, sente e "ouça" os esclarecimentos sobre alguns equívocos
que dizem por aí:
1. Pandora "não faz ninguém
voltar a andar". Isso faz parte de uma lenda que a própria equipe que
cuida dos Na'vis daqui faz questão de desfazer. Isto porque este reino foi
concebido para tornar funcionais e valorizadas as capacidades que nos restam e a
partir delas devolver dignidade, respeito e qualidade a uma vida adaptada.
Obviamente o centro é composto de uma infraestrutura sem precedentes e um grupo
de profissionais de excelente reputação... mas deixam bem claro desde a
primeira consulta: reabilitar para as capacidades atuais sem mais expectativas.
Por quê?
2. Eles defendem o propósito de
que a recuperação da função medular depende da "espontaneidade" da
própria medula em voltar a reagir. Portanto, quando acontece de um paciente
retomar contrações voluntárias como é meu caso, eles atribuem o resultado ao
despertar da própria medula e não ao trabalho de manuntenção osteomioarticular.
Lógico que o trabalho para manter o organismo em atividade por meio do controle,
higiene, exercícios físicos e demais cuidados é importante para dar condições
de não perder a funcionalidade caso esse despertar aconteça.
3. Eles ou qualquer teoria sobre
a neurologia entendem a medula como um mistério por ser uma extensão do
cérebro. Ela é como um "caule" que parte do cérebro abrigada em um
canal que passa dentro da coluna vertebral indo aproximadamente até o final da
região torácica e início da lombar. Dela partem os nervos por onde levam e
trazem mensagens enviadas do, e para o cérebro. Como exemplo, esses comandos
atingem as funções motoras (mobilidade), sensitivas (sensações de tato,
temperatura...), circulatórias (distribuição do sangue, nutrientes e oxigênio),
vesicais (urina), intestinais (fezes) e sexuais (atividade sexual).
4. A lesão medular se caracteriza
por um dano causado a medula, seja de forma traumática (acidente) ou não
traumática (vírus ou tumores). Quando isto ocorre, há forçosamente uma interrupção
na transmissão dos comandos cerebrais e partes do funcionamento de seu organismo
abaixo da lesão podem estar comprometidas. O grau do comprometimento dessas
funções vai depender não somente do nível da lesão (em que altura da medula se
situa o dano) mas também da intensidade de sua extensão (comprometimento de
todo o diâmetro da medula ou parte dele). "O quanto mudam essas funções
depende de onde e do quanto a medula foi atingida". Isto pode ser de forma
total (lesão completa) comprometendo qualquer movimento voluntário abaixo do
nível da lesão; ou parcial (lesão incompleta) podendo prover movimentos voluntários
ao longo da recuperação. Pode ocorrer lesão não somente por fraturas de
vértebra, mas também perfuração, esmagamento ou choques/pancadas com formação
de edema, como foi meu caso. As pessoas que sofrem lesões situadas na região
cervical (pescoço) são classificadas como tetraplégicas, e da região torácica
para baixo, paraplégicas. Os tetraplégicos em teoria são mais dependentes que
os paraplégicos, mas como disse, a intensidade da lesão também determina a
possibilidade das capacidades. Há tetraplégicos que ficam em pé, por exemplo,
comem e fazem esportes adaptados, mesmo com outras limitações.
5. Da mesma forma não há regras
para o comprometimento sexual. Alguns não são afetados e para outros é
necessário a descoberta de novos estímulos para retomar essas funções. Portanto,
pode ser um engano olhar os "plégicos" como se eles não sentissem
prazer. Mas também isso pouco importa, sabe por quê? Porque na condição de para
ou tetraplegia, a escala de valores da natureza humana se ajusta de uma maneira
particular! Perguntem a um deles se
pudessem escolher, o que seria prioritário, assegurar a função sexual como
antes ou a função vesical ou intestinal? É praticamente unânime a resposta!! Independentemente
do nível de "garanhonismo" do passado, a função sexual ou até a
marcha ficaria em segundo plano. Afinal passar a vida toda introduzindo uma
sonda na uretra a cada 4 ou 6 horas para escoar a urina (cateterismo vesical),
ou transitar com sonda e saco coletor (sonda de demora), ou ainda fazer
manobras para eliminações fecais, requer uma aceitação imposta e uma organização
extrema. E isso não é nada confortável, sem falar no risco de vazamentos. É meu
caro, é sem escolha. Bexiga e intestino cheios e distendidos podem levar a
problemas sérios como a insuficiência renal ou impactação fecal. São casos de
emergência médica.
6. Ainda não terminei: o lesado
medular também corre o risco de abrir úlceras por pressão dos ossos na pele (escaras).
Isto acontece porque o desuso do aparelho locomotor acarreta perda de massa
muscular expondo mais os ossos ao contato prolongado com a superfície que nos
sustenta, quando mantemos o corpo na mesma posição. Além disso, em algumas
lesões há risco de aparecimento de movimentos involuntários de membros
(espasmos) que podem causar quedas entre outras consequências. Portanto quando
virem os "plégicos" moverem partes do corpo que são inertes, não
pensem que é algum espírito habitando um corpo, um encosto, um milagre ou
fingimento. Para isso é necessário
medicação para diminuir os espasmos. Além desse tipo de tratamento, existe a aplicação
de botox para relaxamento dos nervos. Já para evitar trombose (provocada por
problemas circulatórios), tomamos injeção diária ou usamos meias, digamos, especiais.
Temos ainda uma alimentação naturalmente laxante, bebemos muita água,
utilizamos manobras para facilitar o movimento intestinal ou outros
estimuladores, e ainda fazemos exercícios físicos e cuidamos da hidratação da
pele com cremes.
Entendeu por que os heróis sem medalhas merecem mais respeito e prioridade?
Isso aí!
ResponderExcluirrs...Tassos...só você mesmo para ler toda essa dureza! Beijo.
ResponderExcluirTb leio!só que não venho marcar ponto!
ResponderExcluirHunf!
:p
Mons, é verdade que antes de te encontrar não conseguia alcançar metade da questão. Fica tudo no plano teórico... impressionante como minha visão da realidade mudou!
ResponderExcluirBeijos, beijos, beijos e muita saudade!!
(me liga quando quiser! fico sem saber se ligo ou não...)
Eu também li, Viu? rsrsrsrs. É dureza mesmo!! São verdadeiros hérois.Bjão
ResponderExcluirLer e ouvir você é sempre uma fonte de novos conhecimentos (mesmo para quem acreditava já dominar o tema). Merci mon grand maître
ResponderExcluirDani: rsrs...marque ponto então! bjo
ResponderExcluirMons: dureza que precisa ser sentida...assim vai o espírito da cidadania.
Renata: bom que você partilha...beijo pra você.
Anônimo: Na verdade quis resumir um pouco o "conjunto" do problema. E esse francês? Quem será você? rs
Tem razão, não lemos, ouvimos.
ResponderExcluirComo driblar um sistema organizado e imposto?
Sorte pero non mucho organizado a ponto de impedir a entrada de uma nova luz ou ar, mesmo rarefeito ou furtivo.
Você vai conseguir, o olhar determinado de alguém determinado não mente jamais.