Parque da cidade...domingo. Calor
no sol e frio na sombra. Ler um livro ou observar os passantes? Hesito. Em
alguns metros dali, despontando do solo, um oásis no deserto: carrinho de água
de coco! Um amontoado de peregrinos à espreita. Desisto. Monitoro o tempo na
minha ampulheta mental para voltar pra casa. Meu rosto "crispé".
Lembrei do moço suado em sua cadeira de rodas retirando as luvas ao chegar ao hospital:
"sair de casa assim, só uma boa dose de insanidade, paciência e muita
habilidade, viu? Vou te contar...". E eu que dos três, só conto com o
primeiro... Volto a olhar o "vespeiro" e desanimo. Ensaio folhear
algumas páginas suspensas por minha indecisão. De súbito me arrebato..."eu
gasto muito mais tempo no banho, me enxugando, me vestindo, arrumando em volta,
estendendo a toalha, organizando a mochila para sair de casa...sem esquecer
nada e não deixar nada cair no chão... calculo previamente o trajeto, prevejo a
falta de rampa e a sobra de canteiros altos, as inúmeras meias-voltas por
causas das falésias desniveladas das calçadas...eu me eternizo nesse processo
de desbravar a selva urbana. E ninguém tem a ver com isso porque ninguém tem
culpa. Mas é isso que faz de mim uma prioridade, não por nada. Não devo me
intimidar, não vou causar pena nem raiva em alguém sensato...não é injusto
merecer adequação a minha necessidade, não é por minha causa que o mundo se
atrasa". Volto a olhar a fila e entre minhas frequentes desistências e
fatídicas insistências cotidianas, reajo...desloco-me em direção a
"fonte"... o vendedor num olhar atento, por trás de todos larga um:
"por favor, deixem a senhora passar...de 300 ou 500 ml?". As pessoas
obedecem e aproximo-me dizendo "300", pensando no conforto da bexiga
no caminho de volta. Percebo ao lado um garotinho vestido de Thor, mordendo seu
martelo. "Mamãe, porque ela foi primeiro?". A mãe tenta disfarçar
distraindo-o com algum atrativo sem nexo. Ele não se deixa levar e insiste sem
tirar os olhos de mim: "por que, hein mamãe?". Dessa vez mais alto
ela diz em um tom cordial e ameno: "Porque ela está dodói". Então eu
olho para ele e rio com receio de levar uma eventual martelada na cabeça! Então
ele inicia o duelo:
-Tá dodói de quê?
-Não tô doeeente... doeeente...
eu só não ando mais. – Falei tentando esclarecer à minha maneira.
-Você não pode ir à escola?
-Posso sim – Ri e continuei:
-Faço tudo que todo mundo faz, só
que de um jeito diferente.
Novo silêncio se fez. Recebo
minha água, pago e antes de partir ele me requisita novamente:
-Por que você não pode mais
andar?
-Lucas, deixe a moça ir. – Interveio
a mãe.
Eu, em um gesto de cabeça,
consenti a continuação do interrogatório instrutivo:
-Porque eu caí e machuquei a... (Medula?
"e o que isso tem a ver com as pernas, moça?". Tentei prever a
sequência do diálogo. Como então dizer a uma criança de 5 anos a relação da
medula com o movimento das pernas? Dizendo! Pois elas são seres muito mais
desenvolvidos que os adultos, fazem conexões menos equivocadas e tratam as
diferenças com muito mais naturalidade!).
-...machuquei as costas com tanta
força que minhas pernas não se mexem mais.
-Ah...fez curativo?
Destemido e curioso, o dono dos
cachinhos de trigo não desistia como sua mãe, que já tinha aberto mão de
contê-lo.
-Não precisou. – Falei abrindo a
garrafinha de água.
-Tomou injeção?
-Muitas.
-E doeu?
-Um pouco. – Falei já dando goles
na minha água.
-Você chorou? – Fiz um
silêncio...deu vontade de dizer "ainda choro as vezes"...olhei pra
ele, vi um rostinho de compaixão.
-Chorei. – Falei sem adicionar
nada mais...
-Cadê sua mãe? – Perguntou ele.
Fiquei muda...um nó interrompeu
minha respiração...não sabia o que dizer...não consegui abreviar, respondi sem
pensar:
-Não sei.
-Você se perdeu dela? – Perguntou
aflito.
A enxurrada já comprometia minha
fala:
-Não, ela viajou. – Pensei ter finalizado
com o assunto paralelo.
-Pra onde? – Ele insistia.
-Pra um lugar bem longe que não
lembro o nome. – Eu disse, já sem fôlego.
Percebi que sua mãe já olhava
para o outro lado, segurando sua mão. E ele continuou:
-E você ficou com quem?
-Com meu cachorrinho.
-Ela vem buscar você? ("ai
Lucas, não me pergunte mais, por favor...")
-Não, eu que vou encontrá-la.
Não dava mais...eu não ia mais
segurar. Olhei pra o outro lado fingindo inclinar a garrafinha para beber água.
-Como você vai encontrar ela,
você não "sabe" andar?
-Não sei ainda, mas vou dar um
jeito.
Não me contive, não tinha mais
força pra impedir minhas lágrimas. Ele percebeu:
-Tá doendo, é?
-Hunrum. – Disse eu, sem palavras,
tentando tomar o resto da água.
-Vou soprar pra passar logo. – Disse ele, largando a mão de sua mãe, que
segurou seu martelo, mas não o reteve. Ele aproximou-se de mim...inclinou-se e
começou a soprar minhas pernas:
-Pronto, passou?
Coisa mais indefesa me
consolando...
Eu fiz sim com a cabeça e disse:
-Já vou, Lucas. Obrigada, viu?
-Tá bom.
Contornei a cadeira pra sair quando
ele se jogou no meu abraço num breve e eterno instante. Fechei os olhos e me
despedi sem dizer nada. Ele seguiu andando segurando a mão de sua mãe de volta
para seu planeta.
Saí dali e chorei compulsivamente por ter reencontrado a ternura nos braços de um principezinho disfarçado de Thor...
Lindo!
ResponderExcluirpela segunda vez um "Thor" cruza seu caminho...
vontade de te abraçar também.
Beijos, meu.
rs...é, meu super herói lindo...meu abraço com ternura.
ResponderExcluirImpressionante como você tem o dom da palavra! Sua intensidade, como já lhe disse antes, emociona tremendamente! Em seus escritos é possível até te imaginar vivendo cada coisinha dessas... cada detalhe! Só você... (quando resolver escrever o livro, avise porque quero o meu autografado... rsrs)
ResponderExcluirBeijo grande!
Cuide-se sempre!
Difícil conter a emoção...
ResponderExcluirBjs
Imagina eu lá...naquele momento...ele é lindo...
ResponderExcluirÉ Laissa...você já me disse. Mas plagiando um trecho do pequeno príncipe sobre a descrição do principezinho, "meu desenho é seguramente bem menos sedutor que o modelo". Bjs
ResponderExcluir"Deixai os meninos, e não os estorveis de vir a mim; porque dos tais é o reino dos céus."(Mateus 19:14)
ResponderExcluirSe isso não é expressão de Deus, não sei mais o que dizer!
Às vezes precisamos de um "tempo diferente" para digerir todas as maravilhas que não conseguimos enxergar na vida frenética que levamos.
A paz de Deus.
Tudo vem por uma razão, e aprendi que as vezes o corpo se quebra para que alma fique a mostra. E mostrar a alma é se despir do mundo e se vestir de céu. Beijos,
ResponderExcluirKarla Luz
Foi o abraço que eu estava precisando...
ResponderExcluirAMIGA....TEM UMA PASSAGEM QUE DIZ: TUDO POSSO NAQUELE QUE ME FORTALECE (Filipenses 4:13)...E SEJA QUAL FOR AS CIRCUNSTANCIAS O OBJETIVO É A SUA CAPACITAÇAO PARA, COM A FORÇA SUPERIOR, ENFRENTAR AS SITUAÇOES, TAO ADVERSAS QNTO FOREM, QUE A VIDA TRAZ...TENHA UMA SEMANA DE MUITA LUZ; forte abraço!
ResponderExcluirPuxa... assim eu choro e tudo!!!rs... Não posso deixar de mais uma vez dizer o quanto vc tem me emocionado e me dado lições de vida. Sei que tu já sabes disso mas vou lembrar o exemplo de profissional que é pra mim e mais ainda de ser humano excepcional. Se eu conseguir em toda a minha carreira ou vida, cativar os alunos ou ser metade da profissional que vc é já me darei por satisfeita. Sinta-se abraçada!!! rs... Grande beijo.
ResponderExcluirRelato emocionante...Remete a algo grandioso demais para ser transcrito em palavras, porém por incrível que pareça você conseguiu mais uma vez expressar em palavras algo que foi sentido com o coração. Beijus e cuide-se pequena-grande mulher!
ResponderExcluirOi. Não a conheço. Comecei a ler o blog por acaso, mas me encantei com sua escrita e não consegui parar até ler todos os posts. Boa sorte nos dias que virão e que não te falte perseverança e inspiração. Sinta-se abraçada por todos os seus leitores. Ainda citando o Pequeno Príncipe, reli agora um trechinho em que o piloto diz: "Vivi, portanto, só, sem alguém com quem pudesse realmente conversar, até o dia em que uma pane obrigou-me a fazer um pouso de emergência no deserto do Saara". Que muitos outros principezinhos apareçam em seu pouso.
ResponderExcluirMais que herói!!! É dessa pureza que o mundo precisa...lindo, lindo!
ResponderExcluirAbraço acolhedor
A verdadeira esperança é uma qualidade, uma determinação heróica da alma. E a mais elevada forma de esperança é o desespero superado....xeiro
ResponderExcluirVç ou melhor a senhora tem o dom de consegui nos transporta como se estivense ao seu lado,lagrimas quem deram consegui conter com um relato tao profundo com só vç ou melhor a senhora pode descreve.
ResponderExcluirum grande abraço de um aluno-amigo ou um amigo-aluno
Anjos existem sim, pena que nem todos tenham o dom de acreditar. As lágrimas que escorrem nas nossas faces podem nos servir de bálsamo para nossas dores. Saudades!!
ResponderExcluirÉ assim que se escreve com o coração. As palavras ficaram pequenas. Parabéns!
ResponderExcluirVocê sabe praticar o "amor fati", de que fala Nietzsche: amar o que não se pode mudar (pelo menos por enquanto ou de uma vez). Suas pernas não se mexem (por enquanto...), mas seu espírito..., ah, como voa!!!! Você é livre! Mais do que muitos que correm... Um abraço.
ResponderExcluirEu gostaria que você soubesse que cada texto escrito é uma lição de esperança para todas as pessoas que estão se acostumando com seus escritos, pois as vezes suas palavras nos confortam tanto que até parece uma inversão de situação, fico me perguntando como somos egoístas ao vermos o mundo de acordo com nossas reflexões momentaneas, gostaria de te abraçar tambem como fez o príncipe Thor, mas quero que saibas você está no meu círculo de orações, não sei se você vai me entender, mas saiba DEUS te ama muito e nunca vai te desamparar. Eu tenho certeza que terás um final bem feliz, eu moro aqui em Fortaleza, é um pouco distante mas meus pensamentos e o meu coração está junto do seu lhe dando um sopro de coragem e perseverança nesta caminhada árdua porém cheia de aprendizado. Beijos.
ResponderExcluirPuxa, fiquei muito emocionada com seu texto. mais emocionada ainda com sua sensibilidade com este garoto. A exclusão acontece exatamente nestes momentos. Estou certa que esta criança tem uma grande chance de ser um profissional que pensa na acessibilidade que é tão importante em nossos espaços vivenciais. Queria estar ai para te abraçar e conduzir você por ai. Beijo grande.
ResponderExcluirEntão Karla...tentando encontrar a minha...
ResponderExcluirTomara, tomara!
ResponderExcluirPatrícia...agradeço sobretudo sua presença e confiança. Bjo
ResponderExcluirIara..pois a descrição foi insuficiente...ele é muito mais lindo que tudo isso...ñão coube em palavra. Em todo caso, que bom que gostou. Bjs
ResponderExcluirAnônimo sobre o trecho do livro: saiba que o trecho citado por você descreve exatamente a sensação que motivou a escrita desse post. No meu entendimento, você conseguiu enxergar o interior do meu desenho nº1... mesmo sem me conhecer. Seja bem vindo (a).
ResponderExcluirArtemisa... ele foi realmente meu super herói..inesquecível.
ResponderExcluirDesespero superado sim...acrescentaria ainda...um desejo inocente...
ResponderExcluirNão se contenha..obrigada pela "escuta". Bj
ResponderExcluirEugênia, foi um anjinho que bateu o martelo...rsrs beijos
ResponderExcluira puresa e linda não tem como ser diferente
ResponderExcluirAmiga..Esses acontecimentos são pequenos sinais que podemos dizer "Ainda vale a pena viver apesar das marteladas da vida".
ResponderExcluirParentese Aberto, as vezes os seres da eternidade se aproximam de nós e se revelam e nós nem mesmo percebemos.
ResponderExcluirNormalmente, uma criança não chegaria a perguntar tanto, pois a família sempre trata de intervir e retirá-la para que a situação não seja constrangedora, mas quando o recado tem que ser dado, a "criança vem direcionada e todos os seus questionamentos são permitidos em razão da sua inocência (dela)". Muitas vezes é a unica forma de a mãe viajante se fazer percebida, presente e apacentar o coração da filha com um terno abraço fraternal.
Eu creio nisso.
A naturalidade com que escreve é muito parecida com a do pequeno curioso. Um beijo.
ResponderExcluirFelipe, da sala de Júnior.
Simplesmente um Anjo enviado por "alguém" lá de cima que te Ama muito e que precisava de alguma forma te acalentar, converssar com você, te abraçar.....Não pude conter as lágrimas...Sigo acompanhando o seu dia a dia e aprendendo muito com você....Bj Flauber
ResponderExcluirTassos, se eu escrevo com o coração e vc me entende, é pq consegue ler com o seu. Beijo e obrigada pela sua presença e seu carinho.
ResponderExcluirNivaldete...obrigada pelas palavras sábias e principalmente pela sua sensibilidade em entender o que eu falo pelas letras...abraço pra vc, obrigada peço apreço.
ResponderExcluirOlga, se "cheguei" até você em minhas "andanças" ainda capengas, saiba que você chegou a mim com sua energia. Vou seguindo carregando minha história e dividindo com quem se sente parte dela. Agradeço suas palavras de fé e sua presença. Abraço pra você.
ResponderExcluirNarla...ele foi lá onde eu não mexia mais. Foi tão simples e ao mesmo tempo tão profundo tê-lo por alguns minutinhos perto de mim...agradeço sua visita e emoção partilhada. Beijo grande.
ResponderExcluirRenato...é exatamente isso. Nothing more...beijo pra vc.
ResponderExcluirAdriana...é por isso que vivemos...exato, concordo.Bjo
ResponderExcluirPaulo...pelo que senti, aquelas perguntas estavam me afentando tanto quanto a mãe. acho que ela se sentiu desarmada e cedeu a profunda reflexão que seu filho estava proporcionando. Foi muito forte. Tinha que acontecer sim.
ResponderExcluirFelipe...estou eu agora como uma "pequena curiosa". rsrs...tenho que "resolver" isso. Abraço.
ResponderExcluirMons,
ResponderExcluirHoje li o do Thor. Engraçado porque justo hoje viajei ao lado de um garoto com síndrome de Down que trabalha no mesmo lugar que eu. Sentamos juntos no ônibus e quando disse que minha mão estava gelada ele começou a aquecê-la, e me deu carinho a viagem toda, de uma forma que, bem, eu estava precisando... Como ele soube? Ele que nunca sentou ao meu lado, que nunca me ouviu, que, que, que... Não basta a denominação "AMIGO" numa plaquinha. Ou "AMOR". Só a sensibilidade consegue carimbar a pele da gente.
Abraço carimbado. Com amor.
Trolina: é uma coisa tão simples e ao mesmo tempo tão grande que a gente não sabe nem dizer o nome...só cabe sentir...
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