Improvisei um acento para
arranhar a tinta no caderno. Com o calor da mão na caneta, com a pressão dos
dedos no papel sem freio, derramei a alma num rabisco sem direção. O desenho da
frase se empenhando sem sucesso em me traduzir. Partilho então incógnitas
vividas, lamentadas ou jamais experimentadas. Não vislumbro mais o horizonte. De
onde estou, alcanço apenas alguns metros esbarrando-me em minhas próprias
limitações. Eu ali, velada pelo Saramago ensaiando a minha própria cegueira.
Circulo em uma ilha móvel que me separa do que até então eu representava.
Olhares me devoram, me negligenciam, me navegam. Muitos piedosos, outros
desprezíveis, alguns destemidos. O único ponto em comum entre eles é a culpa,
talvez. Esse abismo que emudece qualquer vã atitude e se pune por pensar em ter
a chance de ter talvez o que o outro deseja e que nunca poderá alcançar.
- Come peixe? – Disse a copeira
da radiologia interrompendo minha "abdução" interna.
- Como sim – Respondi assustada.
- Melhor levantar os braços da
cadeira pra se apoiar na mesa. – Disse ela.
Assim fiz e ela retomou mostrando
sua experiência em perceber minha inexperiência:
- Faz pouco tempo, né?
Deu vontade de dizer
"Depende, pra mim parece uma década". Mas me contentei em dizer
apenas:
- Dois meses.
- Alguma melhora? – Seguiu ela no
seu interrogatório camarada.
- Considero melhora alguns
avanços. Retirei a sonda, a fralda... – Eu disse, timidamente.
- Então já controla bexiga, né? –
Ela indagou.
- É, controlo. Também não tinha
sensibilidade nas pernas e agora já tenho. – Empolguei-me e prossegui:
- É meu maior ganho! – Disse eu,
apontando orgulhosa para os pés que prontamente obedeceram a meu comando
mexendo as pontas vigorosamente.
Ela me fez sinal de positivo e ao
mesmo tempo pegou outra bandeja de comida e deixou na mesa ao meu lado esquerdo,
onde surgiram um rapaz cadeirante com sua esposa. E seguiu me dizendo:
- Isso é bom, dá esperanças, né?
Olhei para o lado e vi que ele
era "tetra". Perguntei-me desde quando ele estava ali. Se desde a
sonda retirada, a fralda descartada, a sensibilidade recuperada...respondi
incomodada:
- É...nem sei...
Ela retomou:
- Mas são sinais de melhora.
Eu num estranho mal-estar,
relativizei:
- É...mas não quer dizer muita
coisa. Eu nem mexo muito e no mais, faz tempo que não evoluo. Eu disse olhando
pra eles, querendo forçar um sentimento de cumplicidade. E ainda completei com a
frase daqueles dois desconhecidos do corredor:
- "Mas o importante é que
estamos vivos". – Não convenci nem
a mim.
Ele não deu uma palavra, só
mastigava a comida levada a boca por sua acompanhante. E ela soltou algo como
"é mesmo" só para eu não me sentir isolada na minha sequência. Eu
fiquei sem saber o que dizer. Despedi-me momentos depois com estranho pesar de poder
rolar minha cadeira sozinha e ele não. Entendi agora o "não sei o que dizer"
dos que andam...ou até a tentativa desastrosa de amenizar o sofrimento usando
artifícios infrutuosos. Uma mistura de impotência e obrigação em fazer
algo. Novamente me veio a sensação do
livro que li sobre aquela história contada pelo Jean-Dominique Bauby que depois
de um AVC, de todo o corpo ele mexia apenas a pálpebra esquerda. Através de
suas batidas pode dizer "sim" ou "não" às letras apontadas
em um papel por sua fisioterapeuta para se expressar formando frases. Descobri no meio da minha leitura que cada
letra de cada palavra daquele texto tinha sido expressa pelas piscadas de seus
olhos. Exato, ele escreveu um livro inteiro pelas piscadas de sua pálpebra.
Ainda tenho essa sensação indescritível na alma. Eu me perguntei se elas (as
pálpebras) foram inundadas de emoção quando as minhas estavam sendo. Portanto,
caro leitor, nem meu companheiro de almoço que movia a cabeça, enxergava, ouvia
e podia mastigar, nem eu que rolo minha cadeira, nem você que anda escrevemos
pelas mãos ou nenhuma outra parte do corpo o que o Bauby expressou. A hierarquia
desse esforço faz de alguém mais ou menos culpado?
Belíssimo relato reflexivo... Aqui acompanhamos seus passos evolutivos, a cada post sinto uma evolução de suas ideias e concepções... Uma nova sensação é expressa e sentida. Parabéns pessoa admirável desde sempre! Bjus e lembre-se estou aqui... S2
ResponderExcluirIara..um passo após o outro e um dia de cada vez...assim se faz minha evolução. Sei que está aí na janela..obrigada pela presença. Beijo
ResponderExcluirDesde que o mundo é mundo, a comparação com o outro desperta vários sentimentos em nós...
ResponderExcluirInveja, compaixão, conforto, culpa...
Sempre vamos encontrar guerreiros em situações piores.
Adorei o seu estilo de escrever...
bjs
Seja bem vindo (a)...é sua leitura sensível que faz meu estilo ser interessante. Obrigada por sua apreciação.
ResponderExcluirVocê é uma grande escritora, amiga. Deus a abençoe.
ResponderExcluirOlha quem me fala...rsrs..obrigada pelo carinho.
ResponderExcluirAlém de te acompanhar mais de perto, essas leituras são uma experiência. muitas lições de vivencias muitas vezes dolorosas, reflexões e concepções de um lado diferente da sua vida. bjus e saudades.
ResponderExcluirÉ o objetivo mesmo...um convite a um olhar mais aprofundado e introspectivo pra si mesmo. Beijos,saudades de vc tb.
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